Toumani e Sidiki: duas koras que soam a centenas de anos de tradição musical

Toumani Diabaté, lenda da música maliana e referência maior da kora, toca esta sexta-feira na Culturgest, em Lisboa, com o seu filho mais velho, Sidiki. Em palco, respectivamente, a 61.ª e 62.ª gerações da kora na família, com toda a história que isso implica.

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Toumani Diabaté e o seu flho mais velho Sidiki

“Na nossa terra, em família, as crianças começam a tocar música ainda muito pequenas”, explica Toumani Diabaté, ao telefone com o PÚBLICO. “Na Europa, oferecem às crianças jogos de vídeo, pistolas, carros e motas de brincar, enquanto nós damos-lhes uma kora, um balafon, um djembé.”

É com esta simplicidade que o músico maliano justifica o disco que gravou no ano passado em dueto com o seu filho mais velho, Sidiki, em que ambos interpretam uma história familiar de ligação à kora (uma espécie de harpa de 21 cordas, instrumento típico da África ocidental e da cultura mandinga) que vai já na sua 72.ª geração na linhagem Diabaté. Aquilo que os dois tocam em Toumani & Sidiki e esta sexta-feira reproduzirão na Culturgest, em Lisboa (em Julho visitarão igualmente o Festival Músicas do Mundo, em Sines), é assim “uma música que descende desta que existe na família há 200, 300, 400 anos, revisitada pelas novas técnicas de tocar kora no Mali”.

Toumani Diabaté é hoje o mais notável e reconhecido intérprete da kora, depois de ter tomado em mãos o legado do seu pai, também chamado Sidiki – um dos autores do primeiro álbum de kora alguma vez gravado, o histórico e fundamental Cordes Anciennes (1970). Essa notoriedade provém não apenas do virtuoso lirismo que extrai das cordas da kora, mas também da sua total abertura a emprestar essa sonoridade a colaborações com gente como o músico de jazz Roswell Rudd, o guitarrista de blues Taj Mahal e, de forma mais destacada, os cantores pop Damon Albarn (no projecto Mali Music) e Björk (gravou para o seu álbum Volta).

Nos meandos da world music, no entanto, Diabaté é sobretudo enaltecido pelo disco In the Heart of the Moon, gravado em duo com o guitarrista Ali Farka Touré, e Boulevard de l’Indépendance, à frente da sua Symmetric Orchestra.

De Hendrix a Jay-Z

Embora seja frequente a ideia de que Toumani Diabaté se diz um produto não apenas da história familiar, mas também da escuta atenta de outras referências longínquas como Jimi Hendrix ou Miles Davis, o músico desvaloriza essa pegada ocidental na sua música. “Na nossa família a música carrega a sua própria tradição mandinga”, contesta. “A minha música, a do meu pai e a do meu filho têm sempre a mesma base, as mesmas raízes. É como uma árvore que cresce e se vai ramificando. E mesmo quando toco com a Björk ou qualquer outro músico, eles fazem a sua música e eu faço a minha. É daí que nasce algo novo.”

Ainda assim, Toumani admite que a sua técnica na abordagem à kora difere daquela que conheceu a Sidiki-pai e daquela que ouve em Sidiki-filho. No caso do seu sucessor, há todo um lado mais rítmico impresso na linguagem do instrumento que o músico não custa a reconhecer como um provável eco da reputada carreira do jovem como produtor de beats hip-hop no seu país. “Ele é uma estrela no Mali”, garante Toumani. “Toca em estádios de futebol para milhares de pessoas. E quer vir a tocar com os One Direction, a Alicia Keys e o Jay-Z. É de uma outra geração.”

Feliz por ter chegado o momento em que vê Sidiki preparado para assumir este diálogo geracional – “o Sidiki é a esperança!”, declara –, Toumani Diabaté lamenta apenas nunca ter gozado semelhante oportunidade com o seu pai. Partilharam “apenas” o palco do Queen Elizabeth Hall, em Londres, e gravaram juntos no álbum Ba Togoma, em 1987 – ainda que nunca em duo. Até porque nascido apenas cinco anos após a independência do Mali (anterior colónia francesa), em 1965, na altura Sidiki-pai “estava demasiado ocupado a formar uma orquestra de instrumentos tradicionais chamada Ensemble Instrumental National du Mali”. Faltando-lhe esse tempo, Toumani aprendeu a kora sobretudo ao escutar cassetes do pai e do avô. A ausência física pouco pôde, por isso, contra a normal cadeia de transmissão familiar.

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