Ao velho Dylan o que era de Sinatra

Shadows in the Night é o disco em que o bardo da canção e da palavra do pós-guerra regressa lá atrás, muito atrás, para recanalizar para o presente o espírito da voz americana do século, a de Frank Sinatra.

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Sim, há a homenagem a Sinatra, “a montanha que tens que escalar, mesmo que fiques a meio do caminho”, como metaforizou recentemente Bob Dylan durante a primeira entrevista concedida em três anos.

Sim, Shadows in the Night é o disco em que o bardo da canção e da palavra do pós-guerra regressa lá atrás, muito atrás, para recanalizar para o presente o espírito da voz americana do século, a de Frank Sinatra, cheia e clara, sofisticada, moderna tornada clássica (ou vice-versa)

Quando Dylan anunciou que o seu 36º álbum de estúdio seria dedicado à música do cantor de All or nothing at all, a surpresa, assim que colocássemos tudo em perspectiva, não poderia perdurar por muito tempo. É certo que Dylan foi o revolucionário folk que iniciou depois uma revolução eléctrica nos antípodas da sensibilidade de Sinatra, que fora primeiro a estrela pop fundadora, depois crooner da solidão e da intimidade, depois The Voice, homem moldado na era de ouro do entretenimento americano (quando a palavra não era um palavrão). Porém, na última década e meia Dylan tem agido como um guardião da tradição musical americana, guiado pelo blues e pela country pré-rock’n’roll. Nesse sentido, Dylan, que não tinha nenhum disco do old blue eyes quando era jovem na década de 1960, ainda que o ouvisse diariamente na rádio, está mais próximo que nunca de Sinatra.

Shadows in the Night reúne dez canções que Frank Sinatra gravou entre as décadas de 1940 e 1960. Não tem standards universais de Sinatra, mas encontramos nele composições de imortais como Rodgers & Hammerstein (Some enchanted evening) ou Irving Berlin (What’ll I do). Encontramos, essencialmente, uma colecção de canções em que a dor da perda e uma forte melancolia são uma constante – nesse sentido, está no limite do álbum conceptual.

Sem recorrer à recriação em cenário de época, tão comum neste tempo de todos os revivalismos (de Mad Men aos álbuns de versões do cancioneiro americano gravados por Rod Stewart), Dylan transporta as canções para aquele que tem sido o seu universo nesta fase tardia da carreira. Acompanha-o um quinteto onde se destaca a guitarra pedal-steel de Donny Herron, paredes meia entre a country e o marulhar havaiano, e as guitarras de Charlie Sexton e Stu Kimball, de uma discreta sensibilidade jazz. Os arranjos despojados são quase pano de fundo (juntam-se às guitarras, ao contrabaixo e à bateria minimal os ocasionais trompetes e trombones). Tudo em Shadows In The Night se concentra na voz gasta e rouca de Dylan, qual ruína que se impõe com altivez. É essa voz, e o que ele faz dos versos que canta e das melodias que segura, que faz de Shadows In The Night um disco especial.

Bob Dylan tem hoje 73 anos. Está muito longe do Sinatra trintão assombrado e obcecado por Ava Gardner, desse cantor que transformou a solidão de um boémio desencantado no álbum maior que é In the Wee Small Hours. Dylan está até muito longe do Dylan que gravou Blood on the Tracks, o clássico de 1975 que foi crónica de um divórcio tumultuoso e o momento em que o vimos mais exposto, mais perto de deixar cair a máscara. Ouçamos Autumn leaves, balada em movimento lento, absurdamente tocante: “The falling leaves drift by the window/I see your lips, the summer kisses / the sun-burned hands / I used to hold / Since you went away, the days grow long / And soon I’ll hear old winter’s song”. Não, Dylan não canta sobre a paixão do Verão passado. Canta o Inverno que se aproxima, inexorável, e esse passado que não voltará jamais. É toda uma outra canção: Dylan, sábio septuagenário, tornou-a sua.

Não há lamento nestas interpretações que, sendo ternas como raramente lhe ouvimos, encontram espaço para um esgar sarcástico perante a tentação do sentimentalismo e da auto-comiseração (ou não fosse Dylan, Dylan). “Fools give you reasons/wise men never try”, ouve-se em Some enchanted evening. “Where is that happy ending? / Where are you?”, ouvimo-lo perguntar no final de Where are you? – mas, ali chegado, desmascara-se o lamento e aquelas frases são entoadas com todo o artifício, forma de nos assegurar que não, isto não é a sério, é “só” a interpretação dos versos de uma velha canção.

Frank Sinatra sabia que cantava para o mundo inteiro, mas fazia-o com mestria tal que era como se o mundo não existisse: como se se dirigisse directamente a cada uma das pessoas que o ouviam (e só a elas). O Bob Dylan de Shadows in the Night, apoiado por um pequeno grupo de músicos que se põem totalmente ao serviço da canção, canta como se liderasse a banda residente de um bar perdido na cidade. Noite após noite, entoará aquelas canções para ninguém mais que ele mesmo, indiferente ao facto de o homem sentado sozinho ao balcão julgar que aqueles versos foram escolhidos para que o seu coração magoado e a sua vida desperdiçada parecessem mais acompanhados, mais suportáveis.

Chegamos à despedida e That lucky old sun aparece-nos como gospel apoiado na suave ascensão dos trompetes e do trombone. “Up in the morning, out on the job/work like the devil for my pay / but that lucky old sun has nothing to do / but roll around Heaven all day”. A voz cavernosa há-de crescer: “lift me to paradise”, ouvimo-la, gasta mas convicta do seu poder. Mas não há paraíso no Sinatra de Dylan. A homenagem, de resto, reside nisso mesmo.

Tal como Sinatra, Dylan pôs-se totalmente nestas canções - este Dylan. 73 anos e a vida lá atrás, correndo sem parar. A banda continua a tocar com sensibilidade inatacável, o crooner recorda “the night we called it a day”. A banda continua – que sombras são aquelas no horizonte?



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