O Rivoli festeja com Tarab, uma coreografia sufi-groovy

A partir de conceitos da música árabe, Tarab, criação dos coreógrafos Laurence Yadi e Nicolas Cantillon, propõe ao público que siga o abandono dos corpos dos bailarinos. É o momento alto do 83º aniversário do Rivoli e a primeira estreia de um espectáculo internacional na programação de Tiago Guedes.

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Tarab é uma coreografia sem fim DR

Tarab, na cultura árabe, significa qualquer coisa como a resposta emocional à música. Num momento de clímax, de transe, de êxtase. Mas, na verdade, não tem tradução. E não tem tradução porque pertence a uma linguagem física, imaterial. É o corpo e não o intelecto que avaliza o tarab. E foi precisamente esse magnetismo a atrair a dupla de coreógrafos franceses Laurence Yadi e Nicolas Cantillon (fundadores da Compagnie 7273) quando resolveram colocar-se a pergunta: Que música pode ser adequada para dançar? “Para dançar”, esclarece ao PÚBLICO Nicolas Cantillon, “mas não com o intuito de fazer um statement ou dizer algo especial; dançar simplesmente como fazemos numa festa de casamento ou para nos divertirmos.”

A primeira decisão consistiu em limitar a pesquisa à música do Médio Oriente, por integrar quartos de tom que estão excluídos da tradição musical europeia. “Essa sonoridade especial dada pelos quartos de tom, trabalhámo-la depois com o corpo, no espaço entre dois movimentos”, explica o coreógrafo. “Com esta técnica obtemos uma dança muito orgânica e fluida, e quando se dança ou mesmo quando se vê fica-se em transe.” O escopo foi depois limitado à música egípcia e serviu de base para a peça anterior, Nil (Nilo), prolongando-se agora em Tarab.

É desse abandono, da primazia do corpo sobre a razão que vem Tarab, a peça de uma fluidez quase líquida com que o Teatro Municipal Rivoli, no Porto, quis celebrar esta sexta-feira o seu 83º aniversário, num momento do arranque definitivo da programação esboçada por Tiago Guedes após uma primeira declaração de vida que consistiu no ciclo O Rivoli Já Dança!, no último trimestre de 2014.

Agora, depois das obras que devolveram o palco à sua forma original, o Rivoli enceta em pleno o seu novo fôlego. A escolha de Tarab chega portanto com o peso de uma estreia nacional associada a um aniversário. Mas com a leveza daquilo a que Cantillon chama sufi-groovy. “Apesar do sufi”, diz, “não ficamos ligados apenas ao plano místico ou religioso, e estamos mais concentrados no transe e no groove da dança.”

Por isso, ao invés de passarem seis meses em estúdio a trabalhar cada pormenor da partitura coreográfica, como habitualmente acontece, Yadi e Cantillon pediram aos bailarinos que descobrissem o seu tarab e o seu maqam (técnica de improvisação que define o ritmo, o andamento e a tonalidade da música, de acordo com um conjunto de modos melódicos da tradição árabe).

Para que essa viagem não se fizesse às cegas, agendaram uma residência artística no Cairo, encontraram-se com o director do Museu Oum Kalthoum (figura maior da música egípcia) e com bailarinos de danças locais que desvendaram a sua relação com as pistas sugeridas pelo maqam. “A partir daí, a nossa missão tornou-se dançarmos perante um público que reaja ao facto de estarmos a transportar no corpo a nossa relação com estas ideias de tarab e maqam”. Ou seja: a missão de que, durante uma hora, o público não se questione sobre os significados daquilo que acontece em palco, mas antes que ali encontre uma chave para se desligar do mundo depois de um dia de trabalho e deixe que o seu corpo, passivo, sentado na plateia, siga o mesmo abandono dos bailarinos.

A relação com esse lugar não é, no entanto, fácil de alcançar. Que o diga Sir Richard Bishop, notável guitarrista norte-americano (também com raízes libanesas) que habitualmente colabora com a Compagnie 7273. Após três meses no estúdio de dança a espantar-se com a evolução diária que testemunhava nos corpos dos bailarinos em direcção a Tarab, entregou aos criadores uma partitura em branco. Numa luta constante para desenvolver a sua própria ligação ao maqam, deu-se por vencido. Em palco, Tarab alimenta-se então da gravação de uma improvisação ao primeiro take do guitarrista de jazz Jacques Mantica, também ele entregue a um transe enquanto respondia com música ao movimento dos bailarinos que via desfilar à sua frente.

Uma coreografia sem fim
A essencial relação com o corpo pouco mediada pela intervenção da razão, defendem os criadores da Compagnie 7273, foi-se também tornando clara nas suas visitas regulares ao Médio Oriente. “Na Palestina ou em cidades como Cabul, no Afeganistão”, argumenta Cantillon, “vê-se pessoas a dançar na rua com um grande sentimento de liberdade. Queremos partilhar essa liberdade e contrariar uma visão menos positiva que muitas vezes as pessoas têm do Médio Oriente. Tentamos dizer que a dança é parte das nossas vidas e podemos ter vidas melhores se dançarmos.” E ri-se quando percebe para onde lhe foge a boca: “Quando dançamos, não temos tempo para mandar calar os outros.” Tarab, por muito que a política nunca lhe ocupe o centro, é também uma peça política – de ligação aos outros através da emoção, sem tropeçar em clichés irreflectidos.

Tarab existe também enquanto acrescento a uma forma muito particular de a Compagnie 7273 construir o seu reportório. Cada nova coreografia começa onde a anterior tinha terminado, processo iniciado com Clímax (2006, apresentado na Culturgest, em Lisboa), como que tecendo uma única peça que se estende interminavelmente e mais surpreendente em relação à distância do ponto de partida. “Estamos sempre a escrever novos movimentos, nunca os repetimos, mas a energia é a mesma”, defende Catillon. “O movimento vai continuando até que chegue ao fim – só que até agora não teve fim.”

Esse novelo de imprevisível desfecho vai, assim, fazendo pausas sempre que, numa nova criação, a dupla identifica o início de algo novo. É o sinal de que está na altura de parar e fica previamente definido o sítio a partir do qual tudo recomeçará passados meses ou anos.

Rivoli em festa
O programa das festas dos 83 anos do Rivoli inicia-se às 11h, ficando de portas abertas até às 02h. A manhã estará por conta de Sopa Nuvem, uma criação da Companhia Caótica pensada para um público familiar, seguindo tarde fora com um encontro entre o arquitecto Álvaro Siza e o fotógrafo italiano Giovanni Chiaramonte, autores da exposição A Medida do Ocidente – Viagem na Representação, instalada no foyer do teatro. Às 18h30, a poesia de Adília Lopes, Alexandre O’Neil, Fernando Pessoa, Jorge de Sousa Braga e Mário Cesariny andará à solta por vários espaços do Rivoli, dita por António Durães, Adolfo Luxúria Canibal, Teresa Coutinho, Pedro Lamares e Susana Menezes. Das 20h às 23h, o brasileiro Tales Frey revisitará Proxim(a)idade, apresentada em Guimarães, em 2013. Tarab, às 21h30, terá depois as honras de prato forte da jornada.

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