Uma malha de ferro para espantar quem passa

Metamorfose, instalação do projecto Locomotiva, mostra que é possível dar dignidade a uma ruína. Projecto quer transformar zona degradada em São Bento em nova praça.

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Instalação da dupla de arquitectos FAHR 021.3 que ilumina a velha ruína da fábrica Oliva Nelson Garrido
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Faltavam vinte minutos para as 18h00, o frio incomodava e a chuva entranhava-se. Não era muito confortável estar parado na Avenida da Ponte, bem junto à saída do Metro da Estação de São Bento. Mas António Sousa, atrás de um carro de castanhas não se incomodava que ninguém se abeirasse dele. Aliás, tinha ordens para negar um cartucho de castanhas a quem quer que lhas pedisse antes. “Só tenho de manter isto quentinho. Estou à espera que eles cheguem”, diz. Eles quem? “Os que me vão trazer as castanhas. Sabe, é que tenho as castanhas todas compradas para o evento. Depois não lhas vendo, até lhas dou. Vamos lá ver o que isto é”, respondeu.

“Isto” era a inauguração da instalação Metamorfose, o segundo momento da Locomotiva, um projecto promovido pela Câmara Municipal do Porto através da Porto Lazer, em parceria com a REFER e co-financiado pelo programa O Novo Norte. O objectivo é transformar a zona degradada junto à estação de São Bento numa nova praça, viva e redignificada. Ás 18h00, já a noite se tinha instalado e os holofotes permitiram melhor vislumbrar o instalação com a assinatura de FAHR 021.3, uma dupla de arquitectos que concebeu a forma em malha metálica que desde sábado está a iluminar a velha ruína da fábrica Oliva, em plena avenida da Ponte (avenida que, oficialmente, se chama D. Afonso Henriques).

São seis toneladas de aço para desenhar uma estrutura com 28 metros de largura, 11 de altura e cinco de profundidade e 114 intersecções. “Um desafio notável, que nos ajuda a dizer que a intervenção em arte urbana não tem de ser só requalificar, construir de novo, tapar. Pode ser provocar, surpreender, e até dar dignidade a uma ruína”, explica Filipa Almeida, uma das arquitectas envolvidas. Hugo Reis (o outro nome da dupla, que justifica o acrónimo FAHR) admite a apreensão que lhes trouxe o conhecimento de que  era aquela imensa ruína  - entre as muitas que existem na cidade – em que iriam intervir. “Já tínhamos alguma experiência em intervenções deste tipo, nomeadamente em Itália, mas nunca com esta dimensão. E saber que este local já mereceu tantos projectos e tantas propostas, e de alguns nomes de relevo, como os arquitectos Távora e Siza Vieira, só fez aumentar a apreensão. Mas agora é sobretudo bom perceber que as ideias saem do papel, e que é possível causar este impacto”, explica ao PÚBLICO.  

Se antes ninguém olhava para a velha parede, que mais parecia uma pedreira com os seus desníveis e buracos, agora é impossível não reparar na malha metálica a duas cores que a “cobre” e a desafia, lhe acrescenta irregularidades, lhe amplia a visibilidade. Á cor do aço junta um tom de verde, que é também o tom da cobertura dos táxis portuenses, de alguns azulejos e do “sublinhado de erro” dos programas de desenho digital que usam os arquitectos. E assim uma ruína que já era quase invisível de tão antiga, e desocupada, deixa “de ser um erro, para ser uma peça que interpela, que provoca e que espanta”, sintetiza Filipa Almeida.

António Sousa já podia, então, entregar cartuchos às muitas dezenas de presentes que desafiaram a chuva e foram aceitando o calor oferecido pelas castanhas “quentes e boas” e pelos copinhos de vinho quente que também foram distribuídos. Os cartazes da iniciativa Locomotiva – a dizer “que tudo faz mexer” - ajudaram a melhorar as fotos do “instameet” que antecedeu a inauguração. O mundo digital e o universo das redes sociais (como o Instagram, rede onde todos foram convidados a deixar fotografias da Metamorfose) só tiveram a meteorologia a contrariar o ambiente de festa. Mas esse ambiente, de festa e de criatividade, manteve-se, assim como se manterá nas próximas intervenções que, até Junho, irão animar a área circundante à Estação de São Bento, disse Cláudia Melo, a directora artística do projecto Locomotiva.

Depois da Metamorfose, as próximas paragens desta Locomotiva vão passar por intervenções na rua da Madeira, que a Porto Lazer quer ver transformada numa nova praça da cidade, para que passe a ser um lugar de paragem e não apenas de passagem. “A convocatória onde se pedem ideias a todos os que desejem ser programadores culturais já está em marcha, e a adesão tem sido muito, muito boa”, adianta Cláudia Melo.

“Antes da moda do Porto, já era turista na minha cidade”
A Galeria Fernando Santos era a segunda em que entrava e, se quisesse ir a todas, o pai Carlos Rafael, acompanhado da Ana Carolina, de 9 anos, e de Ana Beatriz, de 12, tinha mais 18 espaços para entrar. “Muito antes do Porto ser uma moda já eu fazia turismo na minha cidade”, responde de imediato, quando o PÚBLICO lhes interrompeu o visionamento das obras recentes de Alberto Carneiro e perguntou se costumavam frequentar o Quarteirão das Artes. Carlos Rafael admitiu, no entanto, que estar na Rua Miguel Bombarda em dia de inaugurações simultâneas era uma “mera coincidência”. Quando saíram de casa, em Gaia, tinham como destino os jardins do Palácio de Cristal, mas foram até àquele Bairro por que tem sempre muito que ver.

O ambiente animado que traz as inaugurações simultâneas – e a possibilidade de contactar os artistas que nelas expõem os seus trabalhos – foi por isso uma coincidência feliz que aconteceu à família Rafael. Como, por exemplo, a possibilidade de contactar Valter Hugo Mãe ( “é um escritor famoso”; explica Carlos às filhas) que ontem à tarde assumiu também um papel de curador de artes plásticas. Um papel que, disse ao PÚBLICO, pretende continuar a encarnar durante os próximos anos.

A exposição CURA 2015, patente na Galeria Artes Solar de Santo António, resultou do desafio lançado por Valter Hugo Mãe a artistas plásticos para trabalharem o tema da “Espiritualidade” nas suas várias linguagens. “Um ‘tópico’ disruptivo e desafiador”, admite Valter, e que devolveu “trabalhos notáveis de artistas como Paulo Damião, Armando Alves e Isabel Lhano ou o brasileiro Nino Cais, inédito em Portugal.

Valter Hugo Mãe mostrou-se muito satisfeito com o resultado, e os artistas agradados com o desafio. Isabel Lhano recebeu a “encomenda” de pintar, ao seu estilo “muito caravaggiano” os ícones religiosos do Sagrado Coração de Jesus e de Maria. Deu-lhes os rostos de personagens da Guerra dos Tronos, e tatuou no peito de Jesus a frase em hebraico “Mãe, se eu soubesse…”. A tradução é feita ao PÚBLICO pela autora que logo explica o que lhe quer responder “Maria”: “A mãe responde-lhe, a desenhar com os dedos aquele um seis muito satânico, pois meu filho. Eu também fui enganada”. A frase “Je Suis Charlie”, que dominava toda a exposição da Galeria/Livraria Papa-livros faz, pois, todo o sentido.  

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