Giorgio Napolitano: a longa viagem do “comunista que salvou a Itália”

Dirigente comunista durante décadas, o ex-Presidente fez sempre prevalecer a realidade sobre os preconceitos ideológicos. Em 2011, evitou o afundamento da Itália. Mas não pôde concluir as reformas

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Napolitano encerrou “a excepção”, pedindo aos políticos que estejam à altura do “regresso à normalidade” ALBERTO PIZZOLI/AFP

Se um Presidente da República pode escrever a História, o contrário também é verdade, escreveu ontem no Corriere della Sera o constitucionalista Michele Ainis: “É a História que escreve os presidentes.” Giorgio Napolitano, 89 anos, que esta quarta-feira abandonou a presidência italiana, procurou exercer uma magistratura neutral, garante da estabilidade política e das instituições perante as derrapagens de Silvio Berlusconi.

Tudo muda no Verão de 2011, quando a Itália está à beira do calapso financeiro. Perante a impotência do governo Berlusconi e um Parlamento “balcanizado”, Napolitano empossa o governo de Mario Monti, impondo “uma grande coligação”, de facto, entre o centro-esquerda e o centro-direita. Homem do sistema político tradicional, abriu um “parêntesis de excepção constitucional”, fazendo uma interpretação lata dos poderes presidenciais. Agora encerrou “a excepção”, pedindo aos políticos que estejam à altura do “regresso à normalidade”.

A Itália evitou a intervenção de uma troika, impondo-se uma política de rigor e reformas. Os italianos sofreram “um banho de realidade, contra todos os optimismo da propaganda”, escreveu um analista. Tanto Monti como, depois, Renzi puderam afrontar os desafios graças à protecção “inoxidável” de Napolitano. Ele foi, até ontem, o motor da reforma da política italiana. “Um trabalho de Sísifo”, diz um jornalista.

O comunista
Nada estava escrito nos astros. Napolitano despedira-se da “política activa” no dia 7 de Maio de 2004. Tinha 79 anos de vida e 42 de política, a maioria dos quais como dirigente do Partido Comunista Italiano (PCI). “Elegeram-me dez vezes para o Parlamento nacional e duas para o Parlamento Europeu. É a hora de repousar um pouco.”

Nasceu em Nápoles em 1925, filho de um grande advogado liberal, numa família burguesa que passava as férias em Capri. Inicia o combate antifascista na Universidade em 1942. Dois anos depois adere ao PCI, o que motiva uma dolorosa ruptura com o pai. Deputado em 1953, entra no Comité Central em 1956. Foi responsável pela política cultural do partido, pelas relações internacionais, membro do secretariado.

Era discípulo de Giorgio Amendola, líder da “ala direita” do PCI, que queria que partido renunciasse à parte mais radical da sua doutrina e assumisse o papel de estabilizador da política italiana, impulsionando reformas sociais sem ruptura com o capitalismo — por isso eram chamados “migloristas”. Napolitano foi um expoente desta linha, dialogando com socialistas e sociais-democratas ou cultivando uma postura realista perante a NATO e os Estados Unidos. Foi o primeiro dirigente comunista a ser recebido nos EUA, em 1978, para fazer uma conferência em Harvard sobre a via socialista italiana.

“Sempre em minoria e sempre bom comunista”, resumiu o filósofo Massimo Cacciari: “Nada de vanguardismos, a absoluta realpolitik, críticas duríssimas à União Soviética em privado mas prudência em público. Right or wrong is my party.” Condenou a revolução húngara de 1956. E condenou depois a invasão da Checoslováquia em 1968.

Após a morte de Amendola, em 1980, Napolitano passou a ser a figura de proa dos reformistas e deu outro salto decisivo: acabar com os preconceitos ideológicos em relação à Comunidade Europeia. Era, como se viu, uma aposta estratégica: “A leitura realista da relação entre a independência nacional e a interdependência europeia tornou-se na base cultural do governo Monti”, escreveu o ensaísta Sergio Soave.

Quem é afinal Napolitano? Curzio Malaparte definiu-o na dedicatória do exemplar do romance Kaput que lhe ofereceu: “A Giorgio, que não perde a paciência nem perante o Apocalipse.”

O Presidente
Após a queda do Muro de Berlim e a transformação do PCI num partido reformista — Partido Democrático de Esquerda — Napolitano assume a presidência da Câmara dos Deputados durante a tempestade das “Mãos Limpas” (1992-94). Será o primeiro pós-comunista a ocupar o Ministério do Interior, no executivo de Romano Prodi (1996-98).

Será também primeiro Presidente vindo do PCI. Nas três primeiras votações da eleição presidencial de 2006, a esquerda percebe que não conseguirá reunir unanimidade em torno de um nome. Apelam ao “velho Napolitano”, que será eleito no quarto escrutínio.

Ele abandona o poder com um diagnóstico crítico dos vícios da sociedade e do mundo político italiano. Aceitou a “excepção” de um segundo mandato em 2013, noutro momento dramático. As reformas institucionais não estão concluídas. Conseguiu estabilizar temporariamente a Itália e reforçar a sua identidade europeia. Mas a alternância continua suspensa de eleições legislativas, ainda sem horizonte. A segunda República morreu mas a terceira está por fazer.

Napolitano mostrou “uma extraordinária força política nas circunstâncias cruciais” dos últimos três anos, transformando o Quirinal no “centro da soberania política” e evitando o afundamento da Itália, escreve Sergio Soave num e-book de 2013, editado por um jornal de direita, Il Foglio, e sintomaticamente intitulado: “O comunista que salvou a Itália”. Uma “salvação” por concluir.

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