Justiça atrasada

Numa altura em que a “justiça dos tribunais” é discutida na praça pública de forma tão intensa e acalorada, julgo que seria pertinente discutir a questão da justiça num quadro mais geral e filosófico.

Vem isto a propósito da recente discussão levada a cabo, em sede de concertação social, acerca das alterações às regras de acesso ao denominado Fundo de Garantia Salarial (FGS).

Para compreender a problemática, importa recordar que o FGS é financiado pelas contribuições das entidades empregadoras, via Taxa Social Única, e tem como objetivo assegurar o pagamento das dívidas das entidades empregadoras aos seus trabalhadores (i.e. salários, subsídios de férias, Natal ou alimentação, indemnizações por ter terminado o contrato de trabalho ou não serem cumpridas as suas condições), quando aquelas não as podem pagar, por estarem em situação de insolvência ou terem iniciado o sistema de recuperação de empresas por via extrajudicial (SIREVE). O montante máximo pago mensalmente ao trabalhador não pode ultrapassar três vezes o valor do salário mínimo nacional, com um máximo de seis meses, sendo que o fundo fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, na medida dos pagamentos efectuados.

Perante as críticas de que o fundo tem recusado pedidos feitos por trabalhadores de empresas insolventes que estão a tentar a viabilização ou que recorreram ao Processo Especial de Revitalização (PER), o Governo decidiu clarificar as regras de acesso ao FGS, adaptando-as aos novos mecanismos de recuperação de empresas que estão em vigor desde 2012.

Ou seja, com estas alterações o Governo pretende que os trabalhadores de empresas em processo de recuperação tenham acesso ao fundo e evitar que votem contra os planos de viabilização das empresas.

Trata-se assim de uma proposta que visa “repor” uma certa “legalidade”, tanto mais que os tribunais têm dado razão a muitos trabalhadores que viram os pedidos de pagamento recusados pelo FGS.

Apesar da bondade da medida, que prevê a reapreciação oficiosa de todos os requerimentos apresentados referentes ao PER e de todos os requerimentos entregues, entre 1 de Setembro de 2012 e a data de entrada em vigor das novas regras, por trabalhadores de empresas abrangidos por planos de insolvência, independentemente de terem ou não cessado o seu contrato de trabalho, o certo é que fica por esclarecer como é que  mesma será operacionalizada, num contexto em que os pedidos feitos pelos trabalhadores ao FGS demoram mais de um ano para serem “despachados” e o nível de controlo da veracidade dos pagamentos reclamados é muito reduzido.      

Na realidade, fruto de uma modelo operacional gerador de ineficiências que envolve a articulação entre dois institutos públicos (ISS, IP e IGFSS, IP), bem como da falta de recursos humanos e informáticos, o tempo de resposta aos pedidos dos trabalhadores ultrapassa, em muitas situações, os 12 meses, sendo certo que, apesar do tempo de análise, o número de situações potencialmente abusivas atinge níveis inaceitáveis. Acresce que a capacidade do FGS em recuperar créditos junto das empresas é praticamente nula, conforme se conclui da observação dos dados relativos a 2011, ano em que recuperação de créditos atingiu os 10 milhões de euros num total de dívidas de médio e longo prazo das empresas ao FGS de cerca de 450 milhões de euros (taxa de recuperação de 2,2%).

Daqui resultam três situações de injustiça. Por um lado, as dificuldades “kafkianas” que os cidadãos enfrentam para verem reconhecidos os seus direitos conduzem a que estes não tenham qualquer ajuda no momento em que mais precisam. Por outro lado, aqueles que, abusivamente, utilizam este mecanismo de protecção não são devidamente penalizados (ou são tardiamente), o que significa um incentivo claro ao infractor. Por fim, a inexistência de um eficaz processo de recuperação de créditos junto das empresas devedoras conduz a que o contribuinte tenha de ser, mais uma vez, “chamado”, através dos impostos, a suportar as “(ir)responsabilidades” privadas.   

Refira-se que a resolução destes problemas “operacionais”, que tanto prejudicam aqueles que mais necessitam e que nos impedem, como comunidade, de sair da “cauda da Europa”, exigem uma coragem reformista que ultrapassa muito a vertigem mediática dos anúncios feitos à entrada de uma qualquer reunião, por mais importante que ela seja.

Perante isto, é evidente e deve ser recordada neste caso do FGS a actualidade das palavras do jurista, político, diplomata, escritor e orador brasileiro Ruy Barbosa de Oliveira (1849- 1923): ”A justiça atrasada não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta”. 

Professor da Universidade Lusíada e antigo vice-presidente do Instituto da Segurança Social

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