Akram Khan dança com o pai na cabeça

O coreógrafo e bailarino mostra Desh sexta e sábado no Centro Cultural de Belém. Um espectáculo de deslumbramento mútuo – Khan aceitar ligar-se às suas raízes bangladeshianas, nós pasmamos com uma peça que é, em simultâneo, a cicatrização da relação com o seu pai.

Fotogaleria
A fabricação da personagem “pai” em palco resultou da identificação da geografia (levemente) acidentada da sua cabeça RICHARD HAUGHTON
Fotogaleria
Foi a poetisa e romancista Karthika Nair quem primeiro lhe propôs criar uma peça sobre as suas origens
Fotogaleria

Logo numa das primeiras cenas, muito antes de se ver perante um elefante ou de trepar a uma cadeira gigantesca, Akram Khan, sozinho em palco, dança com vestígios das danças tradicionais que a mãe lhe ensinou em criança, mas dança, antes de mais, com a figura ausente do seu pai, com a recusa em ser um espelho deste.

A cada dois passos, Akram deixa o braço direito ficar para trás, como se alguém lho agarrasse e prendesse, para em seguida sacudir essa presença. “Essa cena representa o estar aprisionado por uma identidade que nos é imposta”, comenta o coreógrafo e bailarino inglês, acerca da herança da cultura bangladeshiana dos seus pais e da forma como a aborda em Desh, solo cuja digressão, passados três anos, termina este fim-de-semana no Centro Cultural de Belém.

Não são, por isso, apenas as reflexões identitárias, políticas e ecologistas que se imprimem no corpo de Akram Khan em Desh. Em parte, admite, esta “é uma peça acerca da fragilidade dos pais”. E esse lado, de confronto e de resistência em subjugar-se a uma cultura à qual Akram não sentia pertencer, de recusa desse modelo parental de um emigrado tentando desesperadamente não trair as suas raízes, é aquele que mais se tem transformado desde a estreia da peça em Setembro de 2011, no Curve Theatre, em Leicester. “Só quando nos tornamos igualmente pais é que percebemos a relação com o nosso próprio pai”, admite. “E eu tornei-me pai em 2013, pelo que essa é a grande alteração psicológica desde a estreia. Acho que o Desh é muito sobre o meu pai e sobre o Bangladesh, sobre uma parte da minha identidade da qual fugi durante muito tempo.”

Khan afasta, no entanto, qualquer tentação de leitura psicanalítica ou terapêutica. A relação com o pai, aliás, continua atravessada pela mesma frustração. Mas é de tal forma essencial na composição da peça que o cozinheiro bangladechiano emigrado para Inglaterra e orgulhoso proprietário do seu restaurante (o pai) é trazido para dentro de Desh, tornando a purgação mais clara e efectiva. Aproveitando a observação casual de um amigo que, no decurso de um ensaio, lhe apontou uma pequena cova na cabeça que lembrava um nariz, Akram resolveu desenhar com um marcador, no cocuruto, uma boca e dois olhos para convocar essa personagem do cozinheiro que lhe dizia, por exemplo, “os estúpidos sotaques não fazem de ti um deles”. “Quando se é adolescente”, insiste Khan, “todos queremos ser outros, quaisquer outros menos os nossos pais. E eu não queria nada ser como o meu pai – nem sabia o que isso significava na altura, mas não queria ser bangladeshiano. Queria ser como o Michael Jackson ou o Bruce Lee, e então imitava sotaques diferentes, de forma tosca. Houve uma fase em que me imaginava um tipo do norte de Inglaterra e imitava o sotaque. Quanto mais o fazia, mais frustrado o meu pai ficava. Mas parece-me que é quase sempre assim a relação entre pai e filho.”

Michael Jackson era, na altura, um símbolo autonómico e emancipatório para Akram. Equivalia à adopção inequívoca de uma cultura quotidiana totalmente distante do legado que o pai tentava passar-lhe à força e era a sua contribuição pessoal para o “ambiente muito caótico” em que cresceu. “De um lado”, recorda, “tinha a minha mãe a tocar discos de tipos como o Tom Jones, porque ela trabalhava na fábrica de discos da Decca. Ele, na mesma sala, tocava bandas sonoras de filmes de Bollywood. E eu punha-me a ouvir Michael Jackson no rádio. Num certo sentido, isso abriu-me o espírito.”

Vénia a Noor Hossain
Foi a poetisa e romancista Karthika Nair quem primeiro lhe propôs criar uma peça sobre as suas origens. Entre a provocação e a cisão continuada com o mundo de casa, Khan respondeu-lhe que isso significaria fazer uma peça sobre Londres. Perante a insistência de Nair em aceitar olhar mais para trás, tentou furtar-se ainda, alegando que nada sabia sobre o Bangladeche. “Bom, talvez esteja na altura de saberes”, respondeu-lhe a poetisa. Foi o que fez. Juntamente com a sua equipa, o coreógrafo desembarcou no Bangladesh, embora pela primeira vez sem ter como destino um casamento ou um funeral e passar o tempo com a família, e sem ter a sua perspectiva sobre o país sistematicamente moldada pelo filtro paterno. “Fomos para ver como o país vive e passámos dez dias a conhecer activistas, políticos, pescadores, agricultores, crianças de rua, mulheres que tinham sido abusadas, artistas – de realizadores a escritores e a fotógrafos.”

Uma das cenas de Desh directamente resultantes da viagem ao Bangladeche coloca Akram Khan esquivando-se a luzes brancas que cruzam o chão do palco, acompanhadas pelo som de buzinas que anunciam uma marcha imparável. Em Daca, como em várias outras cidades asiáticas, chegar de um lado ao outro da rua pode ser coisa para demorar horas e fazer temer pela vida, exigindo uma destreza quase inconsciente para fintar um trânsito torrencial. “Foi um momento muito intenso para nós porque foi um pesadelo”, recorda o coreógrafo. “Não há regras. Se seguirmos regras, acabaremos por ter um acidente. O trânsito vem em 360 graus. Ao voltarmos a Leicester essa cena saiu muito naturalmente, não teve de ser muito coreografada.”

É certo que a fabricação da personagem “pai” em palco resultou da identificação da geografia (levemente) acidentada da sua cabeça, mas Akram Khan andava já de marcador preto na mão, inspirado pela figura emblemática de Noor Hossain. Morto aos 26 anos pela polícia bangladeshiana, em 1987, Hossain foi elevado a mártir em todo o território, tornando-se uma inspiração para todo o movimento pró-democracia. Ao ver fotografias do activista com os slogans “Fora com a autocracia”, “Libertem a democracia” escritos no torso, Khan quis importar igualmente essa imagem para Desh, encontrando depois uma forma enviesada de a evocar, não deixando de se vergar perante um episódio de automática ignição emocional para os bangladeshianos.

Com a sua imagem do Bangladesh a transformar-se durante a intensa estada, Akram Khan voltou a Inglaterra certo de que a sua relação com o país dos seus antepassados tornara-se não mais forte, mas seguramente mais clara. “Ajudou-me a compreender um pouco melhor o meu pai, com quem tinha e ainda tenho uma relação muito complicada. E permitiu-me um pouco mais de clareza, uma vez que as emoções nunca são claras. Em certos aspectos, a peça funciona como cicatrização emocional.”

O deslumbramento de olhar para o Bangladesh pela primeira vez com os próprios olhos deixá-lo-ia debaixo de um estado encantatório que apenas consegue comparar com a perspectiva de uma criança no seu dia-a-dia, lidando com um mundo construído para a escala dos adultos. Em palco, quando o vemos frente a um elefante ou uma selva nascidos de um trabalho de animação com que interage em segmentos comoventes, ou sentado numa cadeira desproporcionada para o seu corpo, “é um conceito quase Alice no País das Maravilhas” que assume estar a seguir. Afinal, Desh é, antes de mais, essa tentativa belissimamente contraditória de Akram Khan procurar estabelecer uma relação com uma cultura que sempre lhe quiseram transmitir, mas de forma livre, desobrigada, quase às escondidas. E, por isso, sem pressões, maravilha-se com o país que reivindicou a independência do Paquistão no momento em que não quis aceitar a substituição da língua bengali pelo urdu; cuja relação com a natureza é constante – “a situação em que me encontro mais próximo da natureza”, diz Khan, “é quando vou ao supermercado comprar peixe”; e uma cultura tão rica que, em Desh, o coreógrafo dialoga com a voz da sua sobrinha, instando-a a aproximar-se da cultura bengali, ao invés de tanto se entusiasmar com Lady Gaga. Tal como o seu pai fez consigo.

Sugerir correcção
Comentar