O Haiti não pode esperar 40 anos

Até à data, o apoio a iniciativas do Haiti contra a cólera e outras doenças transmitidas pela água tem sido decepcionante.

As epidemias são sintoma de pobreza, um indicador indirecto da falta de desenvolvimento social e de sistemas de saúde fracos. O ébola na África Ocidental é um bom exemplo, mas não o único. No Haiti, o país mais pobre do hemisfério ocidental, o surto de cólera que começou em Outubro de 2010 produziu mais de 707 mil casos suspeitos e mais de 8600 mortes até à data, e continuará até que os sistemas de saúde, água e saneamento sejam melhorados. Tal como o ébola, a cólera alimenta-se de sistemas de saúde pública fracos e exige uma resposta sustentada.

A cólera não é um assassino deliberado sem cura, mas uma doença facilmente tratável que apenas requer antibióticos e sais de reidratação para conter a diarreia e o vómito. No entanto, a bactéria move-se rapidamente, transmitida por alimentos ou água contaminada, e em áreas sem condições mínimas de fornecimento de água, saneamento e higiene, explode em epidemias mortais.

No mínimo, o ébola é um lembrete de que o trabalho no Haiti não está feito.

Quer a cólera quer o ébola têm tido alcance limitado quando enfrentados por uma infra-estrutura de saúde pública forte. Mas o Haiti apresenta a menor taxa de cobertura de serviços de água e saneamento na América Latina e no Caribe; apenas um quarto da população tem acesso a latrinas básicas e uma em cada três pessoas não tem acesso a água potável. Além de tudo isso, o Haiti vive num contexto de emergências propensas. Além do terramoto de 2010, sofreu pelo menos seis grandes furacões e enchentes, e dezenas de tempestades. E cada emergência é uma oportunidade para epidemias.

Soluções de longo prazo para aumentar o acesso à água, saneamento e serviços de saúde são muito necessárias no Haiti, e a ONU está a apoiar o Governo nesse sentido. O secretário-geral Ban Ki-moon e o primeiro-ministro Lamothe lançaram uma campanha nacional de saneamento em Julho e, em conjunto com o Banco Mundial, anunciaram em Outubro um plano de três anos como a próxima fase do Plano Nacional de 10 Anos para a Eliminação da Cólera no Haiti.

Com um roteiro claro do que precisa ser feito, a comunidade internacional tem agora a oportunidade de ampliar a sua solidariedade com o Haiti. Até à data, o apoio a iniciativas do Haiti contra a cólera e outras doenças transmitidas pela água tem sido decepcionante. Ao ritmo actual, levaria mais de 40 anos a obter os fundos necessários para os haitianos alcançarem o mesmo nível de acesso que os seus vizinhos regionais. Até que esses sistemas estejam em funcionamento, a resposta humanitária é essencial, e a razão pela qual temos visto o número de casos em declínio.

Estamos num ponto de inflexão, e a União Europeia – o maior doador mundial de ajuda ao desenvolvimento poderia ser um actor principal: o Haiti não pode esperar duas gerações até atingir os mesmos níveis de cobertura do resto da região. Há dois séculos atrás, a Europa lutava contra epidemias de cólera, deixando centenas de milhares de mortes na Alemanha, Inglaterra, França, Espanha... até que Londres e outros aumentaram os seus sistemas de esgoto ligando cidades inteiras. A história mostra repetidamente que não é possível eliminar a cólera sem nelhorar os sistemas de água e saneamento.

Mas os sistemas de saúde, água e saneamento são uma medida eficaz em termos de custos, cujos benefícios vão muito além da eliminação da cólera e outras doenças transmitidas pela água. A melhoria das infra-estruturas públicas também ajuda na nutrição (50 por cento de desnutrição infantil está associada com diarreia repetida ou doenças intestinais); redução da pobreza (pessoas saudáveis são mais produtivas e não perdem dias de trabalho por motivo de doença); e até mesmo a economia (um dólar investido em água e saneamento na América Latina resulta em 7,2 dólares em contrapartidas, de acordo com o Banco Mundial).

Outra medida preventiva fundamental, que complementa a resposta e construção de sistemas, pode ser a vacina por via oral. Segura, acessível e eficaz, esta intervenção protege os indivíduos vacinados e reduz a transmissão e, consequentemente, o impacto da doença na comunidade. O Governo do Haiti pretende vacinar cerca de 300 mil pessoas no próximo ano. O custo é de apenas 3 milhões de dólares americanos. Neste momento, o financiamento disponível é zero. A comunidade de doadores tem de fazer mais.

No cômputo geral, com recursos adequados e intervenções sustentadas, juntamente com melhorias de longo prazo nas infra-estruturas de fornecimento de água, saneamento e de saúde, pode ser possível eliminar a cólera no Haiti durante a próxima década. No entanto, se a resposta vacilar e os recursos não chegarem, os ganhos duramente conquistados podem ser comprometidos e a cólera poderia persistir em áreas localizadas.

Secretário-geral adjunto da ONU e coordenador sénior para a Resposta Cólera no Haiti 

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