As boas ideias às vezes são feias e baixinhas

A Fruta Feia não tem mãos a medir. O Rés do Chão está a consolidar-se para crescer. Nasceram ambos no FAZ – Ideias de Origem Portuguesa, concurso que volta esta semana a desafiar a diáspora para conceber projectos de empreendedorismo social a implementar em Portugal.

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Carregar, carregar, carregar: a tarefa de segunda-feira da Fruta Feia Nuno Ferreira Santos
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Os agricultores são pagos na hora e a um "preço justo" pela fruta Nuno Ferreira Santos
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Bruno Silva, associado da Fruta Feia, aproveitou um dia livre para ajudar Nuno Ferreira Santos
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Paulo Ramos Dias, produtor e "anjo-da-guarda" da Fruta Feia Nuno Ferreira Santos
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São muitos os voluntários que, já em Lisboa, ajudam a descarregar... Nuno Ferreira Santos
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... e a montar as cestas para os associados Nuno Ferreira Santos
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À segunda-feira, a "fruta feia" distribui-se na Casa Independente Nuno Ferreira Santos
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Os associados têm direito a um saco da Fruta Feia Nuno Ferreira Santos
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As cestas são feitas com frutas e legumes da época Nuno Ferreira Santos
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Os associados da Fruta Feia são de todas as idades e origens Nuno Ferreira Santos
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Associado e voluntário, Bruno Silva é um dos pilares da cooperativa Nuno Ferreira Santos
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Isabel Soares e Maria Canelhas têm relação de quase amizade com os associados Nuno Ferreira Santos
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A cooperativa está a planear um terceiro ponto de distribuição, fora de Lisboa Nuno Ferreira Santos
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A Fruta Feia conseguiu evitar um desperdício de cerca de 60 toneladas Nuno Ferreira Santos
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Isabel Soares, engenheira ambiental, deixou emprego em Barcelona para criar a Fruta Feia Nuno Ferreira Santos
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A Fruta Feia tem uma lista de espera de 200 pessoas, que querem ser associadas Nuno Ferreira Santos
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Projecto-piloto do Rés do Chão abriu no 119 da rua Poço dos Negros Daniel Rocha
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Antes de servir uma década como armazém, espaço era uma mercearia Daniel Rocha
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Rés do Chão fez levantamento de todos os pisos térreos desocupados no bairro de São Paulo Daniel Rocha
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Marta Pavão, Margarida Marques (na foto), Mariana Paisana e Sara Brandão são as ideólogas do Rés do Chão Daniel Rocha
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Artigos expostos são desenhados e por vezes produzidos no local Daniel Rocha
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O Rés do Chão 119 é um misto de atelier e loja Daniel Rocha
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Arquitectas fizeram conjugaram o novo e o antigo na actual configuração Daniel Rocha
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Rés do Chão alberga designers de moda e de produto, e um arquitecto Daniel Rocha
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No mezanino, ouvem-se as crianças a brincar no exterior enquanto se trabalha Daniel Rocha

O que um adulto faria para ilustrar o plano de autodestruição da cooperativa Fruta Feia seria pedir para pensar numa curva de Gauss, aquele gráfico em forma de sino que resulta de uma distribuição normal. Alguém com mais imaginação pediria para recordar os contornos de uma jibóia com um elefante dentro (cf. Saint-Exupéry, 1943), aproveitando as rugosidades e os solavancos do desenho para uma metáfora desajeitada sobre a irregularidade do progresso.

A Fruta Feia está numa luta a longo prazo contra si mesma. A cooperativa de consumo idealizada por Isabel Soares tem dois objectivos: o combate ao desperdício da produção fruto-hortícola é uma meta de curto prazo, que está a ter uma inesperada adesão de consumidores, produtores e até de grandes cadeias de retalho e chefs de relevo mundial; mas a meta final é fazer com que a fruta e os legumes sejam escolhidos independentemente do seu aspecto.

Quando chegar a essa fase, o projecto porá em causa o activismo – e o propósito – do próprio nome. Fruta feia e fruta bonita serão fruta. Só. É claro para todos os envolvidos, no entanto, que essa é uma realidade longínqua. A cooperativa ainda está na zona ascendente do desenho, a subir vertiginosamente pela tromba do elefante. Embora esteja a crescer a um ritmo mais célere do que o previsto, está longe do ponto mais alto (a cabeça do paquiderme). Quando lá chegar, quando o aspecto da fruta for irrelevante, começa a descer até se tornar dispensável.

“Sempre foi o objectivo final da Fruta Feia que a fruta fosse comercializada independentemente da sua forma, tamanho e coloração. Que a única coisa da qual o preço dependesse fosse a qualidade”, diz ao PÚBLICO Isabel Soares, engenheira do ambiente, que venceu com este projecto o segundo prémio do FAZ – Ideias de Origem Portuguesa em 2013.

O concurso promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Cotec desafia os emigrantes portugueses a delinear projectos de empreendedorismo social e financia três vencedores em cada edição com um total de 50 mil euros. A Fruta Feia arrecadou 15 mil. No mesmo ano, a Orquestra XXI conseguiu os 25 mil euros do primeiro lugar e o Rés do Chão recebeu 10 mil. Todos se realizaram: a orquestra reuniu músicos portugueses com carreiras no estrangeiro para quatro concertos em Portugal e o Rés do Chão abriu em Junho o seu primeiro piso térreo reabilitado em Lisboa. Mas a Fruta Feia explodiu – como se todos estivéssemos à sua espera.

“A Fruta Feia é uma ideia muito lógica. Tal como eu, muita gente já se tinha apercebido deste problema, mas nunca se tinha feito nada. É das primeiras iniciativas que surge que não só denuncia este problema como apresenta uma solução viável”, diz Isabel Soares. O problema é o do desperdício alimentar provocado pela exigência das grandes superfícies comerciais exigirem aos agricultores produtos a tender para a perfeição. A cooperativa aproveita os produtos rejeitados, paga um “preço justo” por eles e revende-os à sua rede de associados.

Às segundas-feiras, Isabel Soares e Maria Canelhas saem de manhãzinha, na grande carrinha da cooperativa (a segunda; a primeira ardeu), e visitam os agricultores a quem encomendaram vegetais na semana anterior: pêras, maçãs, cerejas, romãs, tomates, alfaces, batatas, favas, cenouras, cebolas, agriões, limões, morangos – o que tiverem os 32 produtores do Oeste que aproveitam o projecto para escoar o que os supermercados não querem. Paulo Ramos Dias, da Hortocambaia, em Mafra, é um deles. E é um “anjo-da-guarda”. É ele quem guarda de um dia para o outro a parte dos produtos que só será entregue na terça-feira aos associados. Sem armazém, Isabel e “Mia” poupam dessa forma um segundo périplo. Basta voltarem ali.

Paulo faz mais: vai ele próprio buscar os alhos franceses ao amigo Pedro Reis para lhes poupar tempo. “Os alhos franceses são aqui a três quilómetros e eu vou lá sempre buscá-los e trago-os para aqui. Não me custa nada. Nem ganho nada: o preço que pago é o preço que recebo”, conta. Gosta de ajudar. E por isso, volta e meia, apesar da timidez, põe-se a dar entrevistas.

Os media estão atentos à Fruta Feia. Em Portugal e no estrangeiro – Espanha, Itália, Suíça, Polónia, Turquia, China, Brasil, EUA. “O New York Times veio a Portugal fazer a saída da troika e a Fruta Feia”, recorda Isabel com orgulho. À pergunta sobre se alguma vez pensou ter tanto impacto mediático, responde em crescendo: “Não, nunca pensamos. Não. Não! De todo!”

A notoriedade ajudou na relação com os agricultores, complicada a início. “Achava que seria a parte mais fácil. Mas cheguei a ser escorraçada de explorações agrícolas. Não acreditavam em mim”, diz Isabel Soares. A dúvida era pertinente: foram anos a deitar para o lixo tudo o que era torto e sem o calibre pretendido. Por que haveria alguém agora disposto a pagar por isso? Paulo Ramos Dias analisa: “As coisas também mudam. Não é só pela crise. As pessoas mudam. As mentalidades…” Algo que ele e os restantes produtores agradecem: “O volume de negócio não é muito grande, mas paga-me quase o salário de um funcionário ao longo do ano.”

Num ano de actividade, a Fruta Feia conseguiu evitar cerca de 60 toneladas de desperdício. Maria Canelhas fala numa “crescimento exponencial”. “Era suposto o projecto arrancar com 40 associados; arrancou com 100. Nesta altura, era suposto estarmos em 210 e vamos nos 500”, adianta. “Temos uma lista de espera considerável. O que é bom. Quer dizer que as pessoas estão interessadas em comer fruta feia. Mas acaba por ser um angustiante porque ainda não temos estrutura nem recursos para acompanhar a procura.”

O próximo passo será criar um terceiro ponto de distribuição, o primeiro fora de Lisboa (na capital, a distribuição faz-se à segunda-feira na Casa Independente e à terça no Ateneu Comercial). Será uma delegação “independente” que funcionará inicialmente sob supervisão e a partilhar a carrinha da casa-mãe. A cooperativa não tem capacidade financeira para crescer à velocidade da procura. Ao impulso inicial dado pelo FAZ e por uma campanha de crowdfunding acresceu o Prémio Inovação Crédito Agrícola (5 mil euros) no mês passado, mas na Fruta Feia fazem-se figas para conseguir um “mega financiamento europeu” a que concorreram.

A presença em Agosto no MAD, simpósio gastronómico fundado por René Redzepi, chef do Noma, restaurante dinamarquês considerado o melhor do mundo, deu-lhes acesso directo a 600 dos mais influentes agentes na gastronomia mundial. “Gostaram muito [da apresentação], emocionaram-se, riram e, no final, deram-nos os parabéns”, recorda Isabel. “O René Redzepi adorou.” Mas fará algo para combater o desperdício? E os demais nos seus países? Em França, o primeiro passo foi dado pelo Intermarché, através da campanha Fruit et Legumes Moches.

Flexibilizar por aí
No FAZ – que hoje, segunda-feira, abre inscrições para a quinta edição do concurso –, os projectos são pensados para começar com o valor do primeiro prémio. Os segundos e terceiros classificados têm de procurar financiamento extra ou parceiros. Tal como a Fruta Feia, foi o que fizeram as quatro arquitectas do Rés do Chão. O projecto-piloto demorou um pouco mais a arrancar, mas está desde Junho de portas abertas no bairro de São Paulo, em Lisboa.

É o número 119 da rua do Poço dos Negros, antiga mercearia que estava há mais de uma década fechada e a funcionar como armazém. Marta Pavão, Margarida Marques, Mariana Paisana e Sara Brandão, as ideólogas do projecto, persuadiram os proprietários a arrendar-lhes o espaço – eles preferiam vender –, reabilitaram-no e transformaram-no num misto de atelier e loja ocupado por quatro designers de moda, uma designer de produto e um arquitecto, que o subarrendam por diferentes intervalos de tempo. O Rés do Chão gere e promove o espaço.

“Uma desconfiança que tínhamos era que um dos problemas para existirem tantos pisos térreos desocupados é o facto de as pessoas não terem capacidade para arrendar os espaços por períodos longos. No projecto-piloto assumimos o risco de arrendar o espaço por um período longo e damos às pessoas a possibilidade de ocupar espaços menores por períodos flexíveis”, explica ao PÚBLICO Margarida Marques, que regressou a Portugal para implementar a ideia. Marta e Mariana fizeram o mesmo. Sara, a única que trabalhava em Lisboa quando o projecto foi submetido a concurso, emigrou – mas continua a participar à distância.

Quando apresentaram o Rés do Chão, a ideia era que no longo prazo a dinâmica criada pela recuperação dos pisos térreos estimulasse a reabilitação dos pisos superiores. Ou seja, em vez da habitual reabilitação em altura, edifício a edifício, promovia-se uma recuperação da cidade pela vida de rua. A escolha do local para o projecto-piloto não foi por acaso.

“O bairro de São Paulo é estratégico ao nível dos transportes e da acessibilidade, muito central, com património arquitectónico muito elevado, e sempre teve ruas com um carácter económico e mercantil efervescente”, aclara Marta Pavão. “Quando começámos a fazer o levantamento dos pisos térreos desocupados, em muitas das ruas eram quase 50%.”

Apesar de os turistas serem clientes de relevo para as marcas subarrendatárias, Marta frisa que não querem um projecto “alienígena”. Até porque é no fomento das relações com outros comerciantes e associações que apostam para o Rés do Chão se replicar pelo bairro.

“O nosso objectivo é dar resposta a todas as pessoas que nos têm contactado – nem todas têm projectos que fazem sentido acolher aqui”, refere Margarida Marques. O levantamento dos pisos térreos desocupados naquela zona está feito e alguns proprietários estão abertos à ideia. “O objectivo agora é facilitar o contacto entre potenciais arrendatários e os proprietários dos espaços que conhecemos”. A receita será a mesma: flexibilizar os períodos de arrendamento para pequenos negócios e estimular o movimento – para a frente e para cima.

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