1974/1989: A redescoberta do modesto conceito de democracia

Na história do pensamento político ocidental, sobretudo na era moderna, coexistiram e rivalizaram entre si dois conceitos de democracia.

Ontem, o mundo livre comemorou os 25 anos da queda do Muro de Berlim e o fim da tirania comunista na Europa central e de Leste. Entre nós, o jornal Avante, do PCP, escrevia o seguinte: “Mais do que a ‘queda do muro de Berlim’ o que as forças da reacção e da social-democracia celebram é o fim da República Democrática Alemã (RDA), é a anexação (a que chamam de ‘unificação’) da RDA pela República Federal Alemã (RFA) com a formação de uma ‘grande Alemanha’ imperialista, é a derrota do socialismo no primeiro Estado alemão antifascista e demais países do Leste da Europa e, posteriormente, a derrota do socialismo na URSS.” (O artigo completo pode ser lido em www.avante.pt/pt/2136/internacional/132905).

Esta “pérola” do autoritarismo comunista pode ser útil para recordar que as ditaduras comunistas de Leste se reclamavam também elas da democracia, a chamada democracia popular. Também é frequentemente esquecido que durante o chamado PREC, em Portugal, os comunistas procuraram impedir a consolidação de uma democracia de tipo ocidental — e que se opuseram a ela em nome de uma democracia socialista, ou popular. Finalmente, é hoje frequentemente ignorado que também Mussolini reclamava que o regime fascista italiano era “mais democrático do que as oligarquias capitalistas”, que ele atribuía sobretudo às democracias inglesa e americana.

A verdade é que, na história do pensamento político ocidental, sobretudo na era moderna, coexistiram e rivalizaram entre si dois conceitos de democracia, que podemos designar por constitucional ou pluralista, num caso, e despótica ou monista, no outro.

Poderíamos recordar a este propósito as penetrantes reflexões de Alexis de Tocqueville sobre a emergência da era democrática, ou era da igualdade, e a ameaça despótica que ela produz — ainda que essa ameaça possa ser contida por uma versão liberal, pluralista ou constitucional, de democracia. Poderíamos ainda recordar vários grandes autores do século XX — como Karl Popper, Friedrich A. Hayek, Isaiah Berlin, Michael Oakeshott, Raymond Aron ou Leo Strauss — que juntaram as suas vozes ao alerta Tocquevilliano contra a versão despótica do conceito de democracia.

Poderíamos também recordar como o caminho para a democracia foi diferente entre os povos de língua inglesa, por um lado, e na Europa continental, por outro, tendo sido Edmund Burke o primeiro a captar essa diferença fundamental — a propósito da revolução francesa de 1789 e do seu contraste relativamente às revoluções inglesa de 1688 e americana de 1776.

Karl Popper argumentou que a principal virtude da democracia — no sentido pluralista ou constitucional — é que não pretende ser um regime perfeito. Por isso está sempre aberta à crítica, à variedade de opiniões, e à mudança gradual sem violência. A principal virtude da democracia, ainda segundo Popper, é de certa forma bastante modesta: permite-nos mudar de Governo através de eleições livres e sem violência.

Parafraseando Isaiah Berlin, numa frase famosa sobre a liberdade, a democracia é democracia, "não é igualdade, nem equidade, nem justiça, nem felicidade humana, nem uma consciência tranquila”. Como disse Winston Churchill, a democracia é apenas o pior regime, com excepção de todos os outros.

Foi este modesto conceito de democracia que o IPRI-UNL e o IEP-UCP celebraram conjuntamente em Lisboa na passada quinta-feira. Foi este conceito de democracia que o IEP-UCP voltou a celebrar no sábado, num seminário com professores do ensino secundário. Ambos contaram com a presença de Maria Barroso — uma protagonista e símbolo maior da nossa democracia.

O nosso amigo Timothy Garton Ash celebrizou a redescoberta do modesto conceito de democracia — sem adjectivos, nem de esquerda, nem de direita, simplesmente democracia — num livro em que relatou as revoluções pacíficas de 1989:

"Em política, eles estão todos a dizer: não há 'democracia socialista', há apenas democracia. E por democracia eles entendem a democracia parlamentar multipartidária tal como é praticada na contemporânea Europa do Oeste, do Norte e do Sul. Todos eles estão a dizer: não há 'legalidade socialista', há apenas legalidade. E com isso eles querem dizer o Estado de direito, garantido pela independência do judiciário, ancorada constitucionalmente. Eles estão todos a dizer: não há "economia socialista', há apenas economia. E economia quer dizer não uma economia socialista de mercado, mas uma economia social de mercado. A direcção geral é totalmente clara: uma economia cujo básico motor de crescimento é o mercado, com extensa propriedade privada dos meios de produção, distribuição e troca" (The Magic Lantern: The Revolution of '89 Witnessed in Warsaw, Budapest, Berlin and Prague, 1990).

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