Guerra aberta em Donetsk no meio de um cessar-fogo de papel

Luta pelo controlo do aeroporto de Donetsk fez pelo menos 16 mortos entre a população civil nos últimos três dias. A Amnistia Internacional acusa o Exército ucraniano e os separatistas pró-russos de violarem a lei humanitária internacional.

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Dez civis morreram em bombardeamentos em Donetsk na quarta-feira JOHN MACDOUGALL/AFP
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Está em curso uma batalha pelo controlo do aeroporto de Donetsk JOHN MACDOUGALL/AFP

Se está em vigor um cessar-fogo no Leste da Ucrânia, alguém se esqueceu de avisar as duas partes em confronto de que esse acordo também se estende à cidade de Donetsk. A violência dos combates na região regressou aos níveis anteriores à assinatura da trégua, a 5 de Setembro, com pelo menos 16 civis mortos nos últimos três dias.

Como é habitual, o Exército ucraniano e os separatistas pró-russos acusam-se mutuamente de terem iniciado os ataques, mas o que ninguém desmente é que está em curso uma nova batalha pelo controlo do aeroporto de Donetsk.

Grande parte da cidade é controlada pelos separatistas da autoproclamada República Popular de Donetsk, mas o aeroporto ainda está – ou estava, ninguém sabe ao certo – sob controlo das forças fiéis ao Governo de Kiev.

Na quarta-feira, pelo menos dez civis foram mortos em bombardeamentos numa zona controlada pelos separatistas – um projéctil disparado por um obus caiu numa escola, matando quatro adultos, e um rocket destruiu um autocarro, fazendo mais seis mortos, todos também civis.

Lilia Ivashenko, uma habitante de Donetsk que mora numa das ruas atingidas pelos bombardeamentos, disse ao VICE News que a situação está cada vez mais perigosa.

"É muito doloroso para mim. Esta rua costumava ser muito movimentada, com pessoas e trânsito, com crianças a irem para a creche. Agora vejo autocarros queimados e pessoas feridas, estendidas no chão. Estas armas não deviam ser usadas em áreas residenciais", lamenta.

Questionada sobre o cessar-fogo acordado entre as duas partes no dia 5 de Setembro, Ivashenko responde com uma pergunta e uma convicção: "Cessar-fogo? Qual cessar-fogo? Não há nenhum cessar-fogo."

No domingo à noite, pelo menos sete soldados ucranianos morreram nos combates pelo controlo do aeroporto de Donetsk, e entre domingo e segunda-feira seis civis foram mortos em bombardeamentos contra zonas controladas pelos separatistas.

"Ataques indiscriminados"
No início da semana, a Rússia acusou as autoridades políticas e militares ucranianas – em particular o ministro da Defesa, Valei Geletei, e o chefe do Estado-maior das Forças Armadas, Viktor Muzhenko – de cometerem genocídio da população russófona no Leste da Ucrânia. Em resposta, a procuradoria-geral ucraniana acusou responsáveis russos por ingerência nos assuntos do país e por "auxiliarem as organizações terroristas da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk na sua actividade criminosa".

No meio desta troca de acusações, a organização de defesa dos direitos humanos Amnistia Internacional (AI) acusou na quarta-feira os dois lados de estarem a cometer crimes de guerra, ao atacarem e ao porem em perigo de forma consciente a população civil de Donetsk.

"As forças ucranianas e rebeldes estão a violar a lei humanitária internacional ao porem em perigo civis com ataques indiscriminados, apesar do facto de esses ataques poderem estar a ser lançados apenas contra combatentes", acusou John Dalhuisen, responsável da AI na Europa e na Ásia Central.

As culpas têm de ser repartidas, explicou Dalhuisen, porque ambas as partes sabem que estão a combater numa zona habitada por civis – a cidade de Donetsk tem cerca de um milhão de habitantes, um número que sobe para o dobro, se for contabilizada toda a sua área metropolitana.

"Estes ataques são ilegais, porque as forças ucranianas usam armas em zonas residenciais, que não podem ser alvejadas com precisão suficiente para se distinguir entre civis e objectivos militares", explica o responsável da Amnistia Internacional.

Mas as forças separatistas também têm de ser responsabilizadas pela morte de civis, afirma John Dalhuisen, que na prática acusa os pró-russos de usarem escudos humanos em Donetsk.

"Ao colocarem alvos militares em áreas residenciais, as forças rebeldes não tomaram todas as precauções possíveis para protegerem civis e puseram os civis em perigo, em violação das leis da guerra. Ao levarem a cabo operações militares nas proximidades, as forças rebeldes partilham a responsabilidade pelos últimos ataques com as forças ucranianas", disse o responsável da AI, referindo-se aos ataques contra o aeroporto, que fica a cerca de dez quilómetros da cidade de Donetsk.

A Amnistia Internacional fala mesmo na existência de "um padrão de ataques indiscriminados contra áreas residenciais, que matam e ferem civis e destroem as suas casas". Nos últimos dez dias, segundo a organização, houve "ataques indiscriminados de combatentes rebeldes contra áreas civis em Debaltseve, a nordeste de Donetsk, e em Avdivka, a norte do aeroporto de Donetsk".

"O uso de armas indiscriminadas em áreas populacionais, como rockets não teleguiados e morteiros, viola a lei humanitária internacional e pode constituir um crime de guerra", conclui John Dalhuisen.

Depois dos bombardeamentos de quarta-feira contra as posições dos separatistas em Donetsk, que fizeram pelo menos dez mortos, o primeiro-ministro da autoproclamada República Popular de Donetsk deixou no ar a possibilidade de as negociações entre as duas partes estarem perto do fim. "As trocas de prisioneiros vão continuar, mas os encontros em Minsk estão em dúvida", disse Alexander Zakharshenko à agência russa RIA Novosti.

No dia 5 de Setembro, Zakharshenko e o líder da vizinha autoproclamada República Popular de Lugansk, Igor Plotnitski, assinaram na Bielorrússia um acordo de cessar-fogo com as autoridades ucranianas, representadas pelo antigo Presidente Leonid Kuchma. Esse documento contém 12 pontos, entre os quais a declaração de um cessar-fogo entre as duas partes; a troca de prisioneiros; e a promessa da concessão de maior autonomia às zonas controladas pelos separatistas.

Duas semanas depois, no dia 20 de Setembro, e também em Minsk, os mesmos protagonistas assinaram um acordo que previa a criação de uma zona desmilitarizada de 30 quilómetros e que proibia "o uso de todo o tipo de armas e as acções ofensivas".

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