Satyajit Ray, a casa e o mundo

Satyajit Ray em seis títulos: a impossibilidade de regressar a casa depois da exposição ao mundo. Eis uma obra que se rende comovida às interacções no espaço conjugal.

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Satyajit Ray, cineasta da intimidade Kathleen Gomes, Kathleen Gomes, Vasco Câmara

– “Sabes o que isto é?” – é o globo terrestre. – “Conta-me o que ouviste, o que viste...” – “Eu vi tudo...”

Estamos a meio da chamada Trilogia de Apu, de Satyajit Ray, estamos em Aparajito (1956). Apu regressou à aldeia. Conta à mãe as experiências e descobertas em Calcutá, onde estuda e onde trabalha. O núcleo familiar já foi abalado (morte do pai). A tristeza materna, disfarçada pelo “conta-me o que ouviste, o que viste...”, é uma silenciosa rendição: tudo vai continuar a desmoronar-se em casa, o mundo chama por Apu.
A trilogia constituída por Pather Panchali (1955), Aparajito (1956) e O Mundo de Apu (1959), em que todas as mortes são percebidas, antecipadas como o vento a varrer antes da tempestade (a própria materialidade dos filmes parece ser tocada por essa íntima coabitação entre as coisas), capta com intensidade lancinante (mas a delicadeza parece não ter fim) as reverberações desse chamamento que desinquieta o espaço doméstico.

Não vamos ver a Trilogia de Apu no ciclo que a Leopardo Filmes dedica, desde dia 25 no Nimas, em Lisboa, ao cineasta indiano (1921-1992) – esse conjunto de três filmes que, como alguém escreveu, proporciona a mesma emoção que o reencontro com a trilogia de O Padrinho, de Coppola, talvez porque nos dois casos a cada visão se alarguem possibilidades de comoção perante as personagens. Mas o que vamos ver – depois de Lisboa, será a vez do Porto, Coimbra, Braga, Setúbal ou Figueira da Foz ao longo de Outubro – é uma extraordinária aventura humana. Ao longo de seis títulos – A Grande Cidade (1963), Charulata (1964), O Cobarde (1965), O Santo (1965), O Herói (1966), O Deus Elefante (1979) – desenha-se o périplo sentimental de seres que parecem protegidos na sua inviolabilidade mas que são, simultaneamente, agentes da sua destruição quando se expõem, quando a expõem (a casa), ao mundo.

Entra a mulher, sai o marido

Há uma narrativa que podemos sobrepor às ficções e às personagens particulares de cada um desses filmes: a (talvez) impossibilidade de regresso a casa incólume, a irreversibiliade da mudança ou (de novo, talvez) a loucura quando se recusa o tempo. Podemos fazê-lo, autoriza-nos a universalidade do cinema de Ray – é nesse sentido, o de transcender o particular, que se entende o que foi escrito no programa do ciclo que o Berkeley Art Museum/Pacific Film Archive dedicou ao cineasta: que “antes do ‘circuito internacional de cinema de arte e ensaio’, antes do ‘Cinema do Terceiro Mundo’, antes do ‘cinema lento’ e do ‘realismo rural’, houve Satyajit Ray...”, realizador universal.
É um dos grandes cineastas da intimidade, autor de uma obra que se rende comovida às interacções no espaço conjugal. Na narrativa que podemos “impor” a este ciclo, A Grande Cidade e Charulata (obras-primas) seriam os momentos em que as personagens, de classes sociais diferentes nos dois filmes, escutam o apelo do mundo. Como se a ele fossem apresentadas – as consequências serão irremediáveis.

Ray transporta ao colo o casal de A Grande Cidade. Negoceia por eles a saída de casa – como em outros filmes do realizador, a mulher vê-se forçada a procurar trabalho, a autonomizar-se do espaço doméstico, pondo “a casa” em risco, levando a que, como se diz às tantas num dos filmes, “a entrada da mulher” seja “a saída do marido”. A escala de planos é trabalhada de forma a preparar a diluição das personagens na cidade – primeiro os dois no autocarro, mais tarde os interiores dos edifícios onde a personagem feminina se dirige para as suas funções, só na última sequência o plano geral, e os dois tão temerários e nós tão comovidos com eles, e tão receosos de que falhem, como em relação ao casal do Aurora, de Murnau. (Mas é de Jean Renoir que sempre nos lembraremos, porque Renoir, que Ray conheceu quando o francês foi à Índia filmar O Rio, de 1951, é a grande “presença” neste cinema que se impõe não mostrar muitas coisas, mas mostrar as coisas justas.)

O apelo do exterior é o vento que, literalmente, escancara as portas e janelas da casa de Charulata, filme baseado em The Broken Nest, de Rabindranath Tagore. O ninho conjugal é, de facto, violado – e o marido fica em vias de sair de cena, novamente. Mas permanece secreta, e de certa maneira inviolável, a forma como um casal ajusta a sua sobrevivência e faz o compromisso para restaurar o habitat. Ray escuta o torpor desta casa – a de Charulata, que espreita o mundo com óculos de ópera antes de se atrever a colocar a sua marca lá fora – até aos seus mais ínfimos e insanes acordes. Só superou isto em The Music Room (1958) – mas esse foi o deslize com a loucura dos que fecharam a casa ao tempo e ao mundo e por isso é o filme máximo do realizador.

E depois, nesta ficção sobre as ficções de Ray, vamos encontrar no Nimas e nas outras salas aqueles que já saíram de casa, que já experimentaram o mundo e mostram o que essa experiência deixou neles. Na dicotomia entre a casa e o mundo (título, aliás, de um dos filmes do realizador, de 1984, também baseado em Tagore), Satyajit Ray não se decide, mas o seu coração está em casa. É talvez por isso que os filmes em que apanha as personagens no mundo e a fazerem compromissos com o tempo, há uma ironia triste a velar tudo. Ou então, também como velatura, como protecção, as marcas de um cinema de género.

Ray sempre responsabilizou Hollywood pela sua educação cinéfila, os “well-crafted films” dos anos 30 e 40 – ficou disso o orgulho que tinha pelo facto de espectadores e críticos não conseguirem perceber se os seus interiores domésticos eram fabricados em estúdio ou reais. O Herói, com o encontro num comboio entre uma estrela de cinema (Uttam Kumar) e uma jornalista (Sharmila Tagore), podia ser, no fundo, uma screwball comedy, há esse género com potencialidade de turbulência em memória longínqua. É um encontro com uma personagem que apagou a sua memória, fez blackout para existir. Se nos for permitido delirar: um impossível encontro entre a Jean Arthur mascarada de austeridade por Hawks ou Capra com o Marcello Mastroianni a tapar o seu vazio existencial com óculos escuros como em La Dolce Vita de Fellini.

Mas é em O Cobarde que esta memória do filme de género americano tem contornos quase fantasmagóricos e ajuda Ray a encarar as suas personagens em périplo pelo mundo. Começa como um film noir – de Walsh, de Ulmer, de... –, numa estação de gasolina, um daqueles momentos de fatalidade, de viagem sem regresso, para Bogart ou Ida Lupino. Mas o “casal” aqui é interpretado por Madhabi Mukherjee, ela, e Soumitra Chatterjee, ele, que interpreta um argumentista de Calcutá que, porque o carro avaria numa aldeia, encontra, já casada, a mulher que antes amou e desiludiu.
– “Se sou feliz?”, responde-lhe ela com uma pergunta. “Que isso fique um mistério”.
O “cobarde” do título é interpretado pelo actor que foi Apu enquanto adulto. A mulher, refugiada num silêncio e numa frieza de fatalidade, é interpretada por aquela que foi Charulata. Eis a violência que o mundo lhes fez, eis o que encontramos, dois seres condenados a adormecerem-se para poderem continuar a sua viagem pelo mundo.

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