Para Jerry Seinfeld, a comédia é uma arte “mortalmente séria”

Jerry Seinfeld voltou à comédia stand-up e até Outubro anda em digressão nos Estados Unidos. Casou, teve filhos, tem uma vida melhor, mas não vive à sombra dos louros. O seu talk show na Internet, Comedians in Cars Getting Coffee, já vai na quarta temporada

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Aziz Ansari e Jerry Seinfeld num episódio de Comedians in Cars Getting Coffee Comedians in Cars Getting Coffee
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Jon Stewart e Jerry Seinfeld num dos episódios da mais recente temporada de Comedians in Cars Getting Coffee Comedians in Cars Getting Coffee
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Jessica Seinfeld e o seu marido Jerry Seinfeld num passeio por Central Park, em Nova Iorque em Junho passado Santi/Splash News/Corbis
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Jerry Seinfeld a andar de bicicleta em Manhattan Splash News/Splash News/Corbis
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Jerry Seinfeld no Hard Rock Live! no Seminole Hard Rock Hotel & Casino no final de Janeiro em Hollywood, Florida. Ralph Notaro/Splash News/Corbis

Jerry Seinfeld não se deixa vencer pela ansiedade. A sua comédia pode vir da alienação que muitos – talvez mesmo todos – comediantes sentem. Mas, à conversa, o comediante de 60 anos parece mais um artesão do que um louco. Aborda o acto de contar piadas com o cuidado e a precisão pensada de um escritor de piadas no mais verdadeiro sentido da palavra: um profissional de olhos de lince que calibra e afina cada número até estar aquecido.

Nos 16 anos que passaram desde que terminou a sua sitcom premiada, Seinfeld não descansou sobre os seus louros. Voltou ao seu primeiro amor – a comédia stand-up -, levando regularmente para a estrada o seu espectáculo, com o qual se encontra em digressão pelos EUA até meados de Outubro. Finalmente assentou, casando-se e tendo três filhos. Ajudou a escrever e protagonizou o filme de animação A História de uma Abelha, de 2007. E produziu The Marriage Ref, uma curta série que misturava o formato de concurso e a reality TVFalámos com o meticuloso comediante ao telefone sobre a sua nova vida, o seu velho programa e o sucesso-surpresa da sua mais recente aventura, o talk show na Internet Comedians in Cars Getting Coffee, que já vai na quarta temporada.

Esta pode muito bem ser a minha primeira entrevista com uma celebridade que começou a horas.

A sério? Não sabia isso sobre as celebridades. Nunca as entrevisto. Bom, acho que agora já sei.

Fale-me da sua digressão. Tem muito material novo?

Eu na verdade não registo muito essas coisas. Estou sempre a desenvolver coisas novas e estou sempre a fazer coisas de que ainda gosto. Para mim, é tudo um grande e confuso parque infantil. Não sei o que é que as pessoas vêm ver, ou o que querem ver, ou o que não querem ver. Se pararmos mesmo para pensar nisso, é tão complicado.



Você é conhecido por ser um técnico, meticuloso.

Extremamente meticuloso, sim. Adoro a precisão de um número de comédia que funciona.

Essa exactidão implica que qualquer piada pode ser consertada. E se a culpa não for da piada, mas sim do público?

Nunca é esse o caso. Há piadas que não têm arranjo, mas nunca é culpa do público porque ele é que decide se se trata de uma piada ou não. Se não a aprovar, ela não sobrevive. 


Já alguém lhe disse que simplesmente não o percebe?

As pessoas não se dão a esse trabalho. Seria preciso ser uma pessoa muito má. Essas simplesmente não vão [aos espectáculos]. E também não me abordam. Quem seria assim tão horrível? Oh, mas eu sei que eles andam aí.

No documentário Comedian (2002), conta a história de uma banda que vai de avião para um concerto no meio de uma tempestade de neve. Quando vão a caminho e passam por uma casinha acolhedora, um deles olha pela janela e vê uma cena de beatitude doméstica e diz “Ugh, como é que as pessoas vivem assim?”. Para um cómico é essencial manter essa sensação de ser um outsider?

Sim. Quando estou numa festa e alguém chega ao pé de mim e não é um comediante, ainda me aperto todo por dentro e fico a pensar: “O que é que vou dizer?” Eles vão perguntar "bem, a comida não é óptima?” e eu fico tipo: “Como é que uma pessoa normal responde a isto?” Tento imitar pessoas normais que falam de comida, do trânsito e do tempo. Ouço o que dizem e repito, mas não percebo nada. Se alguém me dissesse “bem, a comida é óptima”, eu só quereria dizer “mas vamos todos morrer de qualquer forma, que diferença é que faz?” Ficariam chocados.

Como é que se mantém um outsider depois do seu sucesso, de se ter casado e de ter filhos?

Acho que nunca quis ser um insider. Tenho os mesmos amigos há, tipo, 35 anos. Estou com as mesmas pessoas, falo das mesmas coisas. Não tenho uma vida diferente. Tenho uma vida melhor em termos de coisas materiais, mas na verdade não faço nada de diferente. Ainda saio com comediantes e trabalho nas piadas. A minha vida, para mim, no que é importante, não mudou. Mudou muito de outras formas que são óptimas, mas o facto de ter filhos… tenho as mesmas experiências de toda a gente que tem filhos.

O mundo é mais ou menos engraçado visto da sua perspectiva aí do Monte Olimpo?

[Risos] Tudo na vida é engraçado para um comediante. Tudo é absurdo. Tem de se arranjar uma maneira de comunicar o que se está a ver.

É genético?

Sim, acho que sim. Acho que é uma coisa inata.

Recentemente, um ensaio publicado no New York Times descrevia Comedians in Cars Getting Coffee como “tipos ricos a conversarem sobre as alegrias douradas das suas vidas e carreiras e carros, sobre o mundo isolado que eles habitam e nós não”.

[Risos] Eu vi isso. Fez-me uivar. E o exemplo dado – era um argumento fundamentado de forma tão pobre –, o exemplo do mundo elitista e isolado, era Alec Baldwin a querer um garfo num jantar. Era mesmo patético.

Presume um sistema de castas em que vocês estão no topo e nós cá em baixo. 

Se fosse verdade, nunca poderia estar frente a um público a fazer a minha cena. Se eu fosse mesmo essa pessoa, estava arrumado. Ninguém viria ver esses espectáculos, seriam tão horrivelmente irritantes – vindos dessa pessoa elitista do mundo isolado.

Os fanáticos da comédia são o público-alvo do espectáculo?

Achei que seriam eles que iam gostar. De facto pensei nos geeks da comédia. Há tantos geeks do stand-up hoje em dia. Achei que esse tipo de pessoa poderia apreciar algo assim, mas fico feliz por dizer que parece estar a sair-se um pouco melhor do que isso. Dou sempre a resposta Jackie Gleason quando as pessoas me perguntam por Seinfeld ou por Comedians in Cars: é engraçada. As pessoas perguntavam-lhe incessantemente “Qual é o segredo para [a sua famosa série] The Honeymooners?” Se é engraçada, isso prova que eu não sou um elitista amuralhado.

Portanto não vive num condomínio privado e com controlo ao portão?

Não há portão.

… a fazer xixi em frascos como Howard Hughes.

Não. Gostava. Não sei onde se arranjam pessoas para depois levar esses frascos.

Conquistou a sitcom televisiva, fez um filme, está a reinventar o talk show para a era da Internet. Porquê continuar a exigir mais de si?

Não lhe chamaria exigência. É só divertido fazer coisas. E é mesmo divertido inventar coisas. Se não estivesse a escrever material novo, não faria mais stand-up, porque são as coisas novas que quero mesmo ver se resultam ou não. O mesmo para Comedians in Cars. Para mim, para qualquer artista, é uma experiência científica. Faz-se algo e vê-se se as pessoas gostam. Há qualquer coisa na comédia – quando fazemos alguém rir, parece mesmo que fizemos o mundo um bocadinho melhor. Sentimos que vale mesmo o esforço.

Então as piadas são importantes?

Para mim sim. Mas é um bocado difícil dizê-lo. Sou mortalmente sério em relação a tudo o que faço em comédia. Mortal. Sobretudo porque é tão implacável. O conceito de poder pôr-me em frente a uma qualquer audiência e correr bem é das coisas mais engraçadas. Ninguém se sai bem automaticamente. Era por isso que queria voltar ao stand-up depois da série de TV. Porque não há batota e não há coisas dadas à partida.

Nem um estado de graça de cinco minutos no início de cada espectáculo?

Quando apareço e me atrapalho na primeira piada, há silêncio. Silêncio total. Qualquer piada, se não for bem cronometrada e bem dita e bem entregue, morre.

Numa outra entrevista, disse que o convidaram para apresentar os Óscares mas que recusou.

Acho que não era suposto ter falado sobre isso. Lamento tê-lo dito, sim.  

Suspeito que o seu nome surja em quase qualquer contexto em que se precisa de alguém que seja engraçado. Contudo, nunca apareceu nos Simpsons. E tem sido constantemente gozado na série.

Como assim? Que piada?

“A minha mãe não anda com o Jerry Seinfeld” era um dos gags do quadro [no genérico da série]. E o nome "Jerry Seinfeld" aparece na lista de “esquerdalhos louváveis” de Ned Flanders. 

Isso é engraçado.

Mas não lhe parece uma desatenção? 

Talvez estivessem ocupados com outras coisas. Sei como é fazer uma série. Não se está a pensar que temos  de ter todas as pessoas importantes. Tenta-se só fazer a série para aquela semana.

Se entrasse na série, que é conhecida pelos cameos em que as estrelas se parodiam, quem é que seria?

Gostaria de fazer de mim mesmo como um elitista isolado, ocupando uma atmosfera rarefeita em que nunca preciso de pedir um garfo. 

Se fizesse uma sitcom sobre a sua vida hoje, como seria?

Provavelmente é por isso que não a fiz. A vida que ocupo agora realmente não tem o encanto da de um comediante jovem em ascensão. Uma vez velho – teria de ser alguma coisa sobre casamento e família. Acho o casamento um dos temas mais cómicos. Provavelmente começava com a ideia de um tipo que dá seminários sobre mulher-ologia.

Soa um pouco a The Marriage Ref. Já pensou sobre por que é que esse programa não funcionou?

Sim, já. Foi bastante óbvio, com o programa já começado, que o público tinha pervertido a conversa. As pessoas não se sentem confortáveis a dizer as coisas que dizem umas às outras à mesa de jantar num estúdio de TV. É um bocado o que me levou a Comedians in Cars Getting Coffee, que me permite manter a coisa privada e ver o que consigo descobrir sobre a conversa.  

E que tal um filme sobre casamento?

Sim, fosse eu capaz. Na verdade, não tenho ideias para filmes, aquelas grandes ideias que só um filme aguenta. Nem gosto do tamanho dos filmes, a sério. Preferia de longe os episódios de 20 minutos de Bucha e Estica do que qualquer um dos seus filmes. Acho que são muito mais engraçados, e gosto do tamanho. Gosto do tamanho de uma sitcom. Nunca gostei do tamanho dos filmes de comédia. Parece pesadão. Tende a esmagar uma pequena ideia excêntrica, que é o que faz uma grande comédia. 

Já descreveu a indústria do cinema como estando condenada.

Em geral, o medo é o que faz o mundo girar. Basta olhar para o cinema hoje, mesmo para os filmes de comédia.  Estão a embrulhá-los muito bem e a puxar por todas as notas que falam ao coração. O público tem de sair a sentir-se bem. Quando pomos isso tudo numa comédia, mais uma vez, esmagamo-la. A atmosfera de medo arruína-a. Isso era o que era fantástico em fazer uma sitcom. Podíamos fazer uma série em que o Kramer encontra o cenário do Merv Griffin e safarmo-nos com isso porque são só 20 minutos e depois acaba. É como um desenho animado. É onde a comédia prospera, na minha opinião. Quero estar a fazer a melhor comédia, por isso procuro-a em tamanhos de menores porções. Acho que um grande número de stand-up fica com as pessoas muito mais tempo do que um bom filme de comédia. Gosto dessa simplicidade.

O que faz um grande número?

É a forma como fica connosco. Nunca são as piadas que pensamos. Adoro o Donut Lady do Brian Regan. Tenho a certeza de que quando ele escreveu Donut Lady não pensou que ia atingir as pessoas com tanta força. É um dos seus números famosos, sobre ir a uma loja de donuts e encomendar uma dúzia e a empregada contar cada um à medida que pegamos neles: “Já só lhe restam oito… já só restam seis." Tornou-se lendário. Isso não se planeia. Simplesmente aconteceu.

A piada perfeita existe?

Não. Há piadas que são perfeitas para cada um de nós. Há um estudo qualquer sobre nunca se conseguir que um grupo de pessoas concorde que cinco piadas são engraçadas, ou que cinco piadas não o são. Há sempre alguém no grupo que discorda. É simplesmente a natureza da comédia. É muito, muito pessoal.

Tem um "sentido-de-aranha", a "spidey sense", para a comédia?

Tenho um sentido-de-aranha. Posso fazer um espectáculo e podemos transmiti-lo num monitor e eu posso mostrar o número que atinge na escala, tipo “oh, isto é uma gargalhada, é algo que vai ficar no espectáculo” e “esta tem de ir”. Ou posso mostrá-lo em números. Não sei qual é o número, mas posso deslindar isso. É como no beisebol. Há uma média que nos mantém entre os melhores e há uma média que não o permite. É o mesmo com as piadas. Como tudo o resto, há regras. É preciso perceber as regras.

Ainda está a tentar decifrá-las?

Não, já as percebi há muito tempo. Estava a tentar trabalhar num número sobre aqueles autocolantes – aqueles autocolantes nas traseiras das carrinhas em que as pessoas mostram as famílias com bonequinhos só desenhados com um risco. Tenho todo um número sobre isso e que depois se liga a outro número sobre ser gordo. Muitos comediantes fazem números sobre o problema da obesidade, e é sempre um factor tentar perceber: “Quanto é que posso insultar estas pessoas e safar-me com isso?” Se chamamos o público de gordo, podem não gostar. Mas se lho dissermos de uma maneira engraçada, podem gostar. Estas são coisas que não são conhecidas.

 

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

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