O sentido da vida pela goela abaixo

Mais dois volumes de uma imperdível comédia social contemporânea, a saga Melrose.

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Edward St Aubyn precisou de criar Patrick, o protagonista da saga Melrose, para poder sobreviver: se a personagem resistisse, o autor não morreria

O inglês Edward St Aubyn está de regresso com os dois volumes seguintes da saga Melrose, um trabalho autobiográfico que trata o trauma de forma tão elegante quanto corrosiva numa imperdível comédia social contemporânea. “Patrick não sou eu”, afirmou o autor acerca do protagonista da saga, um conjunto de cinco romances sobre crueldade familiar e a arrogância e o vazio da aristocracia.

Foi em Novembro, nas páginas deste suplemento, quando foram editados em português os dois primeiros títulos da série, Deixa lá e Más Novas. Conhecemos Patrick Melrose numa casa do Sul de França, filho de um médico inglês snob e misógino e de uma americana herdeira de uma fortuna e alheada da realidade, que se demitiu de todas as suas funções, incluindo a de mãe, muito graças às humilhações sucessivas de que foi sendo vítima por parte do marido. Edward St Aubyn não é Patrick, mas Patrick tem muito dele ao longo deste romance que parte da experiência pessoal e familiar do escritor. 

O leitor conhece Patrick com cinco anos, altura em que é abusado sexualmente pelo pai, e volta a encontrá-lo aos 20 — é então um junkie que testa os limites a cada dose, tornando a sua vida um permanente desafio, numa espiral de autodestruição em que a morte do pai o leva ao obsessivo questionar de uma herança pesada da qual não sabe como recuperar. Assistimos a um processo de procura e de salvação de identidade, contada com boa dose de ironia e desespero e sem ponta de vulgaridade criativa. St Aubyn viveu tudo isto e criou Patrick à sua imagem — um crítico corrosivo, toxicodependente nostálgico, com um “desespero estilizado”, mordaz, cínico —, sem fazer dele uma cópia sua. Disse que foi a sua maneira de sobreviver. Se Patrick resistisse enquanto personagem, St Aubyn não morreria.

A aposta foi ganha. Em 20 anos, St Aubyn construiu um grande romance. Cada um dos cinco volumes pode ser lido individualmente, mas é no conjunto que se consegue aferir toda a inteligência e toda a densidade da sua escrita. Comparam-no a Evelyn Waugh e ao seu Reviver o Passado em Brideshead — a produtora norte-americana Rachael Horovitz quer aliás adaptar a saga Melrose a uma série de televisão. Pergunta-se, então, como irão resultar no ecrã as discussões psicológicas de Patrick, capaz, no livro, dos diálogos mais acesos na solidão da sua mente. Estar na cabeça desta personagem é assistir em bancada privilegiada às suas refinadas contradições, numa identidade que parecia “começar na desintegração e continuar a desintegrar-se cada vez mais”. 

Esta luta está sublinhada em Alguma Esperança, o terceiro título da saga, publicado originalmente em 1994, e que surge agora em português num volume que junta Leite Materno, o quarto volume, finalista do Booker em 2006. Lá está Patrick na sua dupla qualidade de observador e de objecto observado por si mesmo. Sempre nessa dualidade de olhar que aproxima e afasta, tentando definir-se numa lente quase sempre pouco objectiva. Os títulos que se avolumam na sua mesa-de-cabeceira são o reflexo de uma inquietação que se materializa na diversidade de interesses e estados de alma, como se verá mais tarde na vida. Não há sossego. “‘Sê absoluto para com a morte’, uma frase estranha de Medida por Medida, voltava-lhe à mente enquanto rangia os dentes a tentar abrir uma saqueta de gel de banho. Talvez houvesse alguma coisa meio superficial, meio profunda nesta ideia de que uma pessoa teria de desesperar da vida de modo a agarrar o seu valor real, ou então, talvez não houvesse nada. Em todo o caso, ponderou, espremendo o conteúdo verde da saqueta e tentando regressar ao fio de pensamento anterior, que central de inteligência seria esta. E quão inteligente? Que fio unia as contas espalhadas da experiência senão a pressão da interpretação? O sentido da vida era o que quer que uma pessoa pudesse enfiar pela sua recalcitrante goela abaixo.”

Patrick tem agora 30 anos. Vive entre programas de desintoxicação e a necessidade de ganhar a vida depois de delapidar boa parte da fortuna em excessos. Droga, álcool, sexo, o que lhe valer algum momento de escape numa existência marcada pela memória do trauma. É o mais interior dos romances desta série e também aquele em que St Aubyn exercita a crítica mais mordaz à aristocracia inglesa, num texto curto marcado pelo cinismo e por uma hipótese de salvação. Podemos escapar à neurose familiar? São poucas páginas à volta de um acontecimento supérfluo tratado de forma inclemente. Uma festa organizada por um casal à imagem da decadência aristocrática que o autor tão bem conhece. Entre os convidados, cada personagem move-se numa coreografia sem pontas soltas para sublinhar o vazio dos anos 90 naquela geografia social onde uma princesa Margarida surge como pivô de um discurso que quer aguentar a tradição contra um comportamento, pessoal e colectivo onde não há tradição que aguente. Patrick é o observador sarcástico e impiedoso, inseguro no seu papel de tentar perdoar o pai e de se erguer a partir desse sentimento.

No romance seguinte, Leite Materno (no original um título que replica o nome do álbum dos Red Hot Chili Peppers, Mother’s Milk, de 1989), Patrick tem 42 anos, é casado, pai de dois filhos, e um advogado com poucos clientes, como o seu pai fora um médico de poucos doentes, incapaz de amar a mãe, uma mulher doente que, intimada pela sua eterna vontade de praticar o bem, doou toda a sua fortuna a um irlandês charlatão, líder de uma seita que apregoava a boa-vontade entre os desfavorecidos. A casa da Provença, onde Patrick passou parte da infância, é o último bem que não consegue salvar. “A traição da minha mãe forçou-me a sentir revolta, mas agora a sua doença força-me a sentir pena. Já a sua falta de escrúpulos deixa-me outra vez revoltado, mas a sua coragem deverá supostamente asfixiar a minha revolta e substituí-la por admiração. Bom, eu não passo de um tipo simples, e o facto é que continuo fodido da vida...”

É um dos diálogos de Patrick com a mulher, Mary, dedicada em exclusivo à educação dos dois filhos — Robert, introspectivo, herdeiro da “angústia nocturna” do pai, e Thomas, o bebé que aparece aos pais como a possibilidade de personificar a “limpeza” do trauma familiar. Patrick vive entre insónias, o abandono da mulher, incapaz de satisfazer as suas fantasias sexuais por ser mãe a tempo inteiro, tentando ela mesma não repetir os erros da sua própria mãe, e uma determinação que teme venha a ser frustrada. Não quer passar aos filhos a causa do seu sofrimento, mas parece incapaz de poupá-los às consequências.

Com três narradores — Robert na sua infância; Patrick sempre “paralisado” por “forças equivalentes e opostas”, entre o amor pela mulher e a amante que alimenta como vício; e Mary, a solitária que não consegue um momento de solidão desde que foi mãe —, Leite Materno concentra as qualidades que fazem da saga Melrose um dos melhores livros da actual literatura inglesa. Elegante, mordaz, corrosivo na crítica social e na análise das contradições humanas, irónico e de uma inquietação contagiante. Patrick não é Edward, mas os dois partilham a mesma vertigem e, ao ler estes livros, o leitor sente igual possibilidade de queda. 

Em síntese: cinco estrelas para o quarto volume, menos uma para o terceiro. A média continua alta.

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