Paraíso quase perdido

Aljezur é um ícone turístico com um hipermercado à porta, muitas das suas praias são spots internacionais de surf (com escolas e tudo) e já não há veraneante que não conheça aquelas paragens (até para os hippies aquilo está na moda)

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Alberto Beccaris/Flickr

Em 1988 fui, pela primeira vez, passar férias para a Costa Vicentina. Ou melhor, é a primeira vez de que me recordo. Antes, já tinha passado férias em Vila Nova de Mil Fontes, quando a vila ainda não tinha saneamento básico. Passeei por Porto Covo, pela praia das Furnas e do Malhão. Mas disso não me lembro, que era pequeno demais.

Em 1988, com 8 anos, já me recordo. Fui passar férias para o Vale da Telha (VT). Instalado num planalto vicentino entre Aljezur e o mar, o VT foi um empreendimento turístico megalómano (com equitação, piscina, restaurantes, moradias e apartamentos) que almejava tornar-se numa nova Vilamoura. Mas não resultou. O que ficou foi um projecto com mais lotes por construir do que construídos e uma certa aura de abandono. Mas isso nunca me afectou. Desde que para lá fui essa primeira vez, muitos foram os anos consecutivos em que voltei, ao VT e à região de Aljezur, graças à magia paradisíaca daquelas paragens.

Aquilo que me ficou na memória (e que pude vivenciar durante muito tempo) foi uma Aljezur pacata e recôndita, dividida entre a velha (com o seu castelo mourisco altaneiro e as casas em cascata) e a nova (com casario mais moderno), com dois ou três mini mercados e o mercado municipal, um rio sempre carente de água e dois ou três restaurantes (só mais tarde surgiu o melhor restaurante de Aljezur, que por querelas conjugais tem, provavelmente, um dos nomes mais surreais da restauração nacional: “Ruth o Ivo”). No VT, havia o supermercado Roque que dominava a distribuição alimentar, um parque de campismo que servia toda a região, a discoteca Dinossaurus (na cave do parque, com a entrada em forma de um dinossauro, onde, com quinze anos, estive na minha primeira festa de espuma), os apartamentos (onde também dormi) e o café Piranha (onde tantas vezes joguei bilhar).

À beira praia, o restaurante “O Zé”. E sim, havia o senhor Zé, que muitas vezes vi supervisionando o andamento do seu tasco (hoje, já não existe o senhor Zé). E havia um pescador descontrolado que, dos copos ou da sua loucura inata, provocava cenas à porta do restaurante, atirando violentamente a sua cana de pesca ao chão, por uma razão qualquer que só ele sabia.

E recordo-me das praias (que percorri quase todas) onde o acesso em terra batida era mais a norma do que a excepção: Amoreira (com o seu rio que atravessei a pé, a nado e num barco de borracha), Monte Clérigo (que na maré baixa nos deixa ir em direcção ao sul, em sucessivas pequenas enseadas, limitadas por altas falésias), Arrifana (desde sempre a mais turística, por ter uma estrada ziguezagueante até à praia), Fateixa (com o caminho ondulante por entre a alta falésia, que subi e desci vezes sem conta), Vale Figueiras (com a adjacente a norte, onde o areal se alarga e o isolamento cresce). No Rogil, Vale dos Homens e a Carriagem, que dantes nem escada de madeira tinha e que nos leva ate à Amoreira se seguirmos pelo areal, em direcção ao sul. Na parte alentejana, o Brejão, a praia da Amália (que nos obriga a ladear, durante 15 minutos a pé, a propriedade da fadista, para conseguirmos chegar ao mar). Mais para o sul, fui até Vila do Bispo e às praias do Castelejo e da Cordoama.

E depois, há a Carrapateira, com a praia da Bordeira, com quilómetros de areal em direcção a norte, uma das mais impontes praias da Europa (tinha nove anos quando conheci esta maravilha e ainda me lembro da cara de espanto dos meus colegas da primária, quando lhes nomeei o meu destino de férias). Ao lado, a praia do Amado (que hoje é spot internacional de surf).

Os anos foram-se passando e esta zona parecia querer manter-se um paraíso. A falta de de acessos ultra facilitados à praia, de bares e esplanadas, de animação nocturna ou de gente para se ver e ser vista e as águas frias, o mar bravo e o vento afastavam o veraneante luso que, percorrendo apenas mais 20km, preferia atracar em Lagos.

Sempre existiram os alemães e os holandeses que vinham gozar as suas reformas ou dedicar-se a um estilo de vida alternativo. Mas depois… Bom, depois, veio o festival do Sudoeste. Depois, os surfistas de Lisboa, depois, os do Porto, agora, os espanhóis (surfistas ou não). A ajudar à festa, os jornais, as revistas, as reportagens na TV. Verão após verão, “descubra as mais belas praias de Portugal, os últimos segredos!”. Enfim, o percurso normal dos segredos, passado algum tempo, todos o ficam a conhecer. Hoje, Aljezur é um ícone turístico com um hipermercado à porta, muitas das suas praias são spots internacionais de surf (com escolas e tudo) e já não há veraneante que não conheça aquelas paragens (até para os hippies aquilo está na moda).

Quando lá volto, já não sinto o prazer doutrora. Já é mais difícil conseguir estar deitado na toalha e não avistar ninguém no areal. E o isolamento é um ingrediente fundamental para se sentir a magia daquelas praias, para nos deixarmos absorver pela beleza das falésias, da areia, da vegetação, do calor do sol e do som do mar.

Alguns autóctones talvez estejam muito satisfeitos com o desenvolvimento turístico da região. Outros, nem por isso (já não os deixam pescar em paz…).

Mas o tempo é inexorável e a mudança definitiva. O que não muda são as águas frias, as correntes, as ondas, o vento norte (só cortado pelas falésias), as temperaturas mais baixas do que na costa sul do Algarve e a beleza inexpugnável daquelas paisagens.

Se o que foi já não volta a ser, guardo as memórias, a familiaridade que aquelas paragens me transmitem e alguns recantos (de mais difícil acesso) onde ainda consigo ser feliz.

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