O regresso dos astros de São Tomé

Durante seis anos, os África Negra foram das maiores estrelas da música nascida nos países de expressão portuguesa. Em 1987 desmembraram-se e desde então actuam irregularmente. Mas quarta-feira em Sines e dia 31 no B. Leza, a super-banda regressa.

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Só dois membros dos actuais África Negra vêm da formação original
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Leonídio Barros, um dos membros originais dos África Negra, vive anonimamente em Lisboa

No bairro da Cova da Moura, em Lisboa, há um bar que tem dois nomes: Roque no toldo, Rock na placa à porta. Os nomes, no entanto, enganam: o que se ouve ao fundo da pequena sala escura é música africana, mais propriamente de São Tomé.

Há umas semanas, meia-dúzia de casais sentados em duas mesas levantaram-se quando seis músicos subiram as palettes que fazem o lugar de palco e, atravancados entre amplificadores e paredes exíguas revestidas a ripas de madeira, começaram a tocar. De imediato os casais começaram a dançar debaixo da bola de espelhos, num jeito muito próprio, roliço, falso lento, repleto de meneios.

E compreende-se porquê: apesar de o som estar a milhas do que poderíamos chamar qualidade profissional, a música é arrebatadora. Aquela ginga na guitarra que sacode a anca, vinda talvez do highlife, do soukous, da música tradicional local ou de outras paragens que já não se conseguem identificar, uma secção rítmica que não quebra, as mal amplificadas ondas sonoras invadindo os ouvidos, inoculando o corpo na direcção da dança.

A banda chama-se MV4 e está longe de ser um caso de sucesso: tocam pelos subúrbios de Lisboa, os seus membros já não são garotos e não conseguem viver da música. Leonídio Barros, o guitarra-solo, e Sérgio Fonseca, o vocalista, vivem anonimamente, de trabalhos precários (Leonídio está no desemprego), mas outrora foram estrelas. Fizeram parte de uma mítica banda de São Tomé chamada África Negra, que nos idos de 1980 varreu o universo da língua portuguesa, antes de se desintegrar num mar de confusões que levou ao mais caricato dos desfechos: os membros da formação original fragmentaram-se em grupos, todos chamados África Negra. O poder do nome é tanto que consta que há gente que nunca esteve na formação original a criar bandas com essa denominação.

A boa notícia é que na próxima quarta-feira, dia 23, muitos anos depois da separação do conjunto inicial, os África Negra actuam no Festival Músicas do Mundo de Sines; uma semana depois, a 31, tocam no B. Leza, em Lisboa.

A história dos África Negra, em particular dos músicos que a compuseram e compõem, é confusa, pelo que convém desde já elucidar um par de detalhes: a banda foi formada por um talhante chamado Horácio e por Emílio Pontes. De seguida vieram João Seria, o vocalista, Emídio Vaz, guitarra-solo, e o “nosso” Leonídio, que nos África Negra sempre foi guitarra-ritmo. A formação chegou a ter 11 músicos, mas na última encarnação tem seis, dois dos quais membros-originais: Seria e Leonídio, que sempre foram os principais compositores. Serão estes seis, com os dois compositores à cabeça, que actuarão em Sines e Lisboa.

Leonídio, que em alguns discos é identificado como Leonildo, foi o nosso interlocutor: chegou a Portugal a 23 de Junho de 1999, 22 anos após juntar-se à nascente formação dos África Negra, e 41 anos após nascer, a 21 de Abril de 1958, na cidade de São Tomé, freguesia da Conceição, numa zona piscatória. Ainda vive por cá, estando de momento desempregado.

.As janelas da casa de Leonídio davam directamente para o mar e foi por elas que o seu “pai atirou muitas das [suas] primeiras guitarras”, irritado com o facto de o filho “passar mais tempo a tocar do que a estudar”. Tanto o sénior como a esposa eram enfermeiros e sonhavam com um emprego sério para o filho. Mas desde os “cinco, seis anos” que o rapaz só pensava na música. “Ganhei o gosto através de um amigo, com quem brincava sempre, que fez uma viola a partir de uma tábua estreita, com três pregos de cada lado e fio de nylon da pesca." Leonídio roubou-lhe a viola e o rapaz “começou a chorar e foi-se queixar à mãe dele”, mas o instrumento não foi devolvido. Sem saber, Leonídio tinha acabado de escolher uma carreira.

O pai de Leonídio tinha um rádio que passava “coisas como Roberto Carlos”, cujas canções Leonídio tentava replicar noite fora, levando o sénior, que queria dormir, à atitude atrás descrita: atirar a viola pela janela fora. No seu trajecto rumo ao estrelato houve outras violas, feitas pela mão do próprio Leonídio, gradualmente aperfeiçoadas. “Com oito anos peguei uma lata de azeite, furei-a, enfiei uma tábua no meio e o som já ia mais longe”, recorda.

Até que um dia Leonídio viu um homem com uma viola de caixa, com cavilhas para afinar as cordas, e começou “a ver as posições das mãos dele, os movimentos dos dedos”. Pediu a viola emprestada – e com muito trabalho melhorou, em particular quando, “após gamar muitos tostões aos [seus] pais, [comprou] uma viola igual”.

Na zona de Leonídio havia bailes populares onde se tocava a música local, mas também do Congo e do Zaire – o que fizesse dançar. Inspirado por esses bailes, fez o primeiro grupo, Os Piedosos, aos 12 anos. Até que começou a ficar conhecido: “Punha-me a tocar à porta de casa dos meus pais e passado um bocado estava muita gente a ver-me. E começaram a aparecer os dirigentes [agentes] de outros grupos, que vinham convidar-me para tocar."

 

Um som e uma nação

Os África Negra só tinham uma cassete cá fora quando Leonídio – então com 20 anos, em 1978 – foi convidado a substituir o guitarra-ritmo, que adoecera. Não houve ensaios, mas o público aderiu e Leonídio teve a primeira sensação de estrelato: ofereceram-lhe bebidas e vomitou ao chegar a casa. Quando o guitarra-ritmo melhorou, ninguém mandou Leonídio embora: contando com o baixo, África Negra passou a ter quatro guitarras.

“Tocávamos todos os fins-de-semana e estava sempre tudo cheio”, lembra o guitarrista. Tinham dinheiro “para viver só da música”, pese embora Leonídio mantivesse a profissão de professor primário que conquistara para agradar ao pai. Tocavam ao ar livre, “enquanto as pessoas quisessem dançar, das 21 às quatro da manhã aos sábados e das 18h às 23h aos domingos”. Eram festas populares, gigantes, em que nascia um som ao mesmo tempo que nascia uma nação independente. 

Ganharam fama, muita, e em 1981 vieram a Portugal em digressão. A lista dos locais onde tocaram diz uma ou duas coisas sobre o nosso país: Cruz de Pau, Moscavide, Corroios – subúrbios.

Receberam um convite da Valentim de Carvalho para gravar o primeiro vinil e aproveitaram. Tinham três letristas externos – Gete Rita, Mangelégua e Cardoso; a tarefa de Leonídio e Seria era “pôr um ritmo nas palavras”. (Isto é: compor.)

Que ritmo era esse? “Era música das Antilhas, ou do Zaire, que a gente ouvia na rádio e adaptava à música de São Tomé." Na prática é música baseada em guitarras highlife (aqueles dedilhados que nos Vampire Weekend se tornam tédio mortal e nos África Negra são força vital) com baixo e bateria alquebrados, quase em queda.

Aninha, o LP, saiu em 1981 e com ele chegou o primeiro êxito, da canção com o mesmo nome. A partir daqui os África Negra tornaram-se imparáveis: Angola chamou-os de imediato e acabaram por fazer nove digressões naquele país; percorreram os países de expressão portuguesa de lés a lés; e gravaram mais dois vinis – Carambola e Angélica – na Rádio São Tomé. Se forem ao YouTube encontram lá tudo.

“Era uma loucura”, recorda Leonídio. A banda cresceu e “havia sopros, que dançavam com passos combinados, uma coisa organizada, [tinham] duas bailarinas que também cantavam”. Na altura começou um ritual: durante os concertos da banda o povo começava a berrar “Mama Djamba”, “Mama Djamba”. “Começou num concerto em Portugal, a comemorar a independência da Guiné-Bissau”, recorda Leonídio. “Dividimos a noite com os Super Mama Djombo [da Guiné – e grande banda] e tocámos durante horas. No final o público chamou por nós, e, para não deixarmos os Mama Djombo tristes, começámos a gritar, no meio das canções, 'África Mama Djamba'”. A expressão, deturpada, ficou e acompanhou os anos de êxito dos África Negra.

 

Até que chegou 1987, melhor ano da humanidade (o FCP foi campeão europeu) e pior ano da humanidade (África Negra desmembrou-se).

A banda, que “na altura era composta por 11 elementos”, estava em digressão por Cabo Verde, onde os África Negra foram recebidos como reis. “Sete dos elementos recusaram-se a voltar a São Tomé”, conta Leonídio. Entre eles João Seria. “Fomos por um mês. Ficámos quatro meses. Até que tínhamos mesmo de voltar e os sete não quiseram."

Durante algum tempo, os quatro membros dos África Negra que retornaram a casa refizeram a banda com outros elementos; os sete que ficaram em Cabo-Verde também tocaram com o mesmo nome – eram de tal modo adorados em no arquipélago que não queriam sair de lá.

Os que retornaram gravaram “mais uns três CD”, diz Leonídio. João Seria “voltou passados cinco anos e foi reintegrado na banda, que passou a ter dois vocalistas”. À medida que o brilho dos África Negra originais foi sendo esquecido em Cabo Verde, os seus elementos foram encetando o caminho de regresso a casa. Certo é que quando Leonídio veio para Portugal, em 1999, “os África Negra ainda continuavam – mas já sem o êxito de antigamente”.

Na realidade, a banda nunca chegou mesmo a acabar. Consta que houve outras formações chamadas África Negra e que ainda hoje alguns músicos tentam passar-se pelos membros originais, mas em 2008 os que restavam da formação inicial lançaram um álbum chamado Cua na Sun Pô Na Buà Fa. João Seria ainda está na banda e Leonídio, apesar de distante, idem.

E serão estes dois astros, os dois compositores que definiram o som da banda, que guiarão a noite de quarta-feira em Sines e a de dia 31 no B.Leza. Que ninguém duvide: vão brilhar bem alto.<_o3a_p>

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