Exames de Português: actos falhados

A verdadeira falha está em achar que saber classificar actos ilocutórios ajuda a distinguir bons alunos de maus alunos.

Tal como fizemos notar num artigo a propósito do exame nacional de Português do ano passado, também este ano o exame de Português do 12.º, realizado a 18 de Junho, continua a apostar na objectividade dos critérios de classificação. Ironicamente, naquela que é a parte mais objectiva da prova não existe consenso. Uma frase apenas, cuja autoria se tornou subjectiva, foi suficiente para deflagrar uma polémica extraordinária.

A APP (Associação de Professores de Português), depois de considerar a prova equilibrada e objectiva, alerta no dia seguinte ao do exame para o facto de haver um erro científico na correcção de uma pergunta de funcionamento da língua relativa à classificação dos actos ilocutórios. O Iave (Instituto de Avaliação Educacional) não confirma a existência de um erro, mas uma outra sigla junta-se ao debate. A APL (Associação Portuguesa de Linguística), por sua vez, defende que o erro existe, que não se trata de uma questão de opinião, mas sim de pragmática textual. É só depois da intervenção da comunidade científica, composta por pessoas independentes que não dão aulas a alunos do liceu, que o Iave passa a contemplar como válida a opção primeiramente avançada pela APP.

Tudo isto a respeito da última pergunta do grupo II do exame, aquele que visa aferir a capacidade de leitura e os conhecimentos gramaticais dos alunos. A partir de um texto de Lídia Jorge no qual a autora, por discordar de que a prosa queirosiana constitui “uma espécie de bitola geneticamente inultrapassável”, sugere que todos aqueles que, actualmente, admiram mais Eça de Queirós do que os prosadores nacionais que vieram depois dele padecem de “preguiça e lentidão em entender”, são então formuladas dez perguntas de resposta rápida (sete perguntas de escolha múltipla e três perguntas de identificação ou classificação), entre as quais a pergunta que suscitou toda a polémica.

É razoável afirmar que, pelo menos de acordo com o que o grupo II se propõe a testar, é bom aluno a Português quem for capaz de seleccionar, identificar e classificar certas coisas. A bitola do Iave não requer que os alunos saibam ler, compreender aquilo que lêem ou expressar correctamente a opinião que lhes suscita o que leram; requer que, entre outras coisas, saibam que actos ilocutórios estão presentes em certas frases. Enquanto os especialistas trocam impressões especializadas acerca da distinção entre actos ilocutórios compromissivos e assertivos numa frase que, afinal, nem foi escrita por Lídia Jorge, os bons alunos a Português convencem-se de que são bons alunos porque souberam pôr a etiqueta certa numa frase. O que se pode concluir, por isso, é que, para o Iave, saber português é saber etiquetar coisas.

Há duas formas de considerar falhado este exame. A primeira consiste em denunciar a ambiguidade da resposta a uma pergunta, o que foi feito extensamente nos dias que se seguiram à sua realização, como referido acima, e em prometer um exame limpo de ambiguidades no ano seguinte. É possível, porém, que a falha não esteja na ambiguidade e que limpar o exame deste tipo de impurezas seja fascina desnecessária. O que falhou no exame não foi nem a apresentação de um texto sobre bitolas e preguiçosos, nem o enxerto de uma frase de Almeida Faria num texto de Lídia Jorge, nem a pergunta cuja resposta se revelou demasiado ambígua. A verdadeira falha, parece-nos, está em achar que saber classificar actos ilocutórios ajuda a distinguir bons alunos de maus alunos, o que é parecido aliás com achar que é bom pescador aquele que sabe distinguir um carapau de uma sardinha no supermercado.

Entretanto, não se chega a discutir a relevância do estudo dos actos ilocutórios no início do Ensino Secundário. O Iave consideraria decerto ociosa uma discussão destas, pois deixaria de poder avaliar alunos com perguntas e respostas objectivas, de submeter os professores às suas decisões e de ouvir a comunidade científica, a mesma que faz os Programas e impõe as Metas. De vez em quando, não seria improdutivo ouvir aqueles que, de facto, dão aulas no liceu sobre as matérias que têm de leccionar. Se assim se fizesse, talvez se concluísse que conteúdos como actos ilocutórios são actos falhados.

Professora de Português

Investigador FCT

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