Contramão constitucional

Não é só uma provocação institucional burlesca típica de Jardim, é também um expediente adicional no conflito em curso.

A retórica do Governo e da maioria em relação ao Tribunal Constitucional é reminiscente da anedota do condutor que, ao ouvir na rádio que circula um carro em contramão na autoestrada em que se encontra, se apressa a corrigir que não é só um, são todos…

O balanço dos atuais Governo e maioria é, de facto, impressionante. O seu historial arranca em abril de 2012 com a declaração unânime (sim, repito, unânime) da inconstitucionalidade do diploma que criminalizava o enriquecimento ilícito. Passou logo de imediato pela declaração de inconstitucionalidade das normas que procediam ao corte dos subsídios no Orçamento do Estado para 2012, reiterada em nova decisão em 2013. Conhece novo desenvolvimento com duas (sim, repito, duas) decisões de inconstitucionalidade de normas relativas ao Tribunal Arbitral do Desporto, segue caminho com a pronúncia de inconstitucionalidade de parte da reforma administrativa de Miguel Relvas, prossegue com nova pronúncia de inconstitucionalidade quanto à requalificação dos funcionários públicos, e dá ainda lugar a uma declaração de inconstitucionalidade de diversas normas do Código do Trabalho.

No final de 2013 junta-se-lhe a pronúncia, novamente unânime, pela inconstitucionalidade da convergência de pensões, em fevereiro de 2014 ocorre a declaração com força obrigatória geral das normas processuais penais que alargavam o recurso ao processo sumário, e culmina (até mais ver) na declaração de inconstitucionalidade do Orçamento do Estado para 2014 (com direito ao brinde do acórdão da aclaração, motivado pela teimosia e intenção inflamatória do executivo).

Um estrondoso número de 11 decisões num espaço de apenas três anos, realidade sem paralelo e sem antecedente, e a que o Governo e a maioria respondem com uma retórica de ataque ao Tribunal, acusando-o de irresponsabilidade, anatemizando o seu ativismo e queixando-se da falta de qualidade das suas decisões.

Perante este quadro, não devemos desconsiderar a recente iniciativa de revisão constitucional do PSD-Madeira como apenas mais uma diatribe de Alberto João Jardim. Não obstante o ressuscitar de inúmeras reivindicações do jardinismo profundo (a extinção da Entidade Reguladora da Comunicação Social sendo um bom barómetro disso mesmo e recordatório da qualidade da liberdade de imprensa no arquipélago), o ponto forte do projeto passa pela extinção do Tribunal Constitucional e da fiscalização preventiva.

Já não basta, pois, rever a Constituição para a limpar do seu profundo enviesamento marxista e dos planos quinquenais que nos impõe quotidianamente através dos conhecidos instrumentos de radicalismo de extrema-esquerda que são o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e o princípio da proteção da confiança. Já não chega impedir os perigosos sindicalistas militantes e subordinados a um programa ideológico que ocuparam ilegitimamente o Palácio Ratton de fundamentarem as suas decisões em princípios basilares do Estado de direito democrático. Já não é suficiente alterar as regras de seleção dos juízes, impedindo-os de frustrar as expectativas de que seriam disciplinados e bem-comportadinhos, em vez de interpretarem a Constituição.

Aparentemente, é mesmo preciso acabar com o Tribunal Constitucional, tomando a opção nuclear, porque na linha dos autores do projeto e de muitos na linha dura do atual PSD, a questão constitucional que temos não resulta de termos um Governo até hoje incapaz de produzir um Orçamento do Estado conforme à Lei Fundamental e de reincidir na emissão de normas já objeto de reiterados juízos de inconstitucionalidade.

Não obstante a desautorização da direção nacional do PSD, recusando a oportunidade da iniciativa e de parte do seu conteúdo, o projeto de revisão dos deputados do PSD-Madeira enquadra-se na perfeição no contexto de oposição frontal ao Tribunal Constitucional desenvolvido pela maioria, reproduzindo os traços fundamentais da narrativa de deslegitimação do Tribunal. Não é só uma provocação institucional burlesca típica de Jardim, é também um expediente adicional no conflito em curso, permitindo até ao PSD nacional afirmar moderada e generosamente que até consente que o Tribunal Constitucional continue a existir…

Porque não se deve brincar com coisas sérias, importa denunciar a iniciativa. No entanto, logo de seguida, importa também deixá-la morrer solitariamente, reservando-lhe a nota de pé-de-página que merece, a título de curiosidade bizarra, em futuros manuais de Direito Constitucional.

Membro do secretariado da concelhia de Lisboa do PS

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