Pantera inquieta

Manu Dibango, o homem que pôs Nova Iorque a dançar antes do disco-sound, que misturou a makossa com o jazz e o funk, actua na sexta-feira em Portugal.

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Têm dois minutos e meio para gastar e nenhum vídeo de gatinhos para vos entreter? Então façam o seguinte: abram a página do Spotify ou sigam para o Youtube e pesquisem: “Manu Dibango” + The Panther, que, caso não saibam, é o tema de abertura de Africadelic, álbum de 1973 de Dibango. O que se segue é uma tareia inclassificável: abertura de percussão, uma primeira rajada de metais, baixo funk, guitarra saída de um single de Archie Bell e de novo os metais, numa sofreguidão dançante que sobe e sobe até o corpo ficar possuído por aquele ritmo e por aqueles espasmos de saxofone que, segundo o mito, enlouqueciam as mulheres.

E é a isto que vamos ter direito hoje, no Castelo de São Jorge, no âmbito do festival Lisboa Mistura: à makossa, ao jazz e ao funk que estão na raiz da música de Manu Dibango: “Vamos tocar as coisas que as pessoas conhecem”, diz o monstro da música africana ao telefone, “e vamos tocar coisas que as pessoas não conhecem”, acrescenta, antes de rematar com classe: “E as pessoas que não conhecem vão ficar contentes”. 

Para Dibango, que “depois de um concerto em Portugal, há muitos anos, nunca mais [tocou aqui]” seria “indelicado” chegar a nossa casa “e tocar exclusivamente coisas que ninguém conhece”. “Seria como ir jantar a tua casa e escolher o jantar”. Dibango leva muito a sério as actuações ao vivo: “Ganho a vida com concertos, não discos. E faço muitos concertos, que estão sempre cheios. Hoje toco em Portugal, no domingo toco em Paris e está esgotado”. 

Disco-sound antes do disco-sound

É assim desde 1968, quando um single chamado Soul Makossa o tornou uma estrela da noite para o dia. O segredo de Soul Makossa é a sua inesperada fusão: baixo e guitarras wah-wah que podiam estar num single de Barry White, uma linha de sax sexy e ali estava uma outra África, já não rural ou tradicional. Foi assim pela carreira fora deste saxofonista que também lhe dá no vibrafone.

A junção faz sentido num homem que cresceu com “pais que vinham de etnias diferentes e rivais”, ainda por cima pouco propensas a aceitarem casamentos fora da etnia. Dibango demonstrou “talento musical muito cedo”, a “cantar na Igreja”. “Comecei pelo piano, como toda gente”, recorda. Pegou “num saxofone pela primeira vez aos 12 anos” e três mais tarde foi “estudar música para Paris”. Talvez por isso possa dizer hoje: “Não sou representativo de África, sou representativo de Manu”.

Naquele tempo, quando um camaronês ia para Paris “era francês”. “Agora somos todos africanos, mas na altura éramos todos franceses. Há uma história de colonização que não pode ser esquecida. Boa ou má, é a realidade. Eu sou um produto da história”.

Ser um produto na história significava, no caso, ser jovem no exacto instante em que os instrumentos electrificados, trazidos pelos ocidentais, se tornaram disponíveis. “Lido com a cultura ocidental e a africana desde sempre. Como colonizado, sempre tive acesso à cultura ocidental. Mas nunca deixei de tocar a música com que nasci. Só que toquei diferente, toquei o que quis”.

Tocar o que quis é eufemismo: Soul Makossa é disco-sound antes do disco-sound nascer. Como conta Peter Shapiro, no óptimo livro Turn the Beat Around, o DJ David Mancuso usou o single nas suas festas, tornando-o um êxito – mas sendo o original tão obscuro, dezenas de versões foram gravadas, até que Dibango conseguiu editar a sua versão nos EUA e chegar ao topo das tabelas. É uma tema tão marcante – embora fique longe da absoluta alucinação de uma vintena de temas posteriores de Dibango – que Michael Jackson o usou na coda de Wanna be startin’ something

Ao longo de mais de 40 anos de carreira, e partindo da makossa, género camaronês, Dibango integrou o highlife do gana, baixos funk, guitarras wah-wah, psicadelismo, reggae, jazz, numa constante e permanente reinvenção que – não vamos mentir – teve os seus momentos baixos, mormente nos discos de baladas ou em algumas obras que ficaram datadas à conta dos sintetizadores, mas que não raro pariu jóias que ainda hoje, e apesar de toda a exposição que Dibango teve, permanecem desconhecidas da maior parte dos ocidentais. Se não tiverem paciência para recolher tudo, oiçam apenas The Very Best of Manu Dibango: Afro Soul Jazz From the Original Makossa Man, compilação muito bem escolhida. E se resistirem a A freak sans fric é porque têm problemas na bacia. 

“Nos anos 60 não havia computadores. Não havia sintetizadores. Não havia muitos discos disponíveis para ouvirmos. A única vantagem disto é que podíamos inventar à vontade sem estarmos a ser comparados com ninguém”. 

Não foi, no entanto, fácil a Manu encontrar a sua voz. “Eu não sabia o que fazer. De todo. Era como todos os jovens: cheio de vontade, mas sem nada para me guiar. Não encontrei a minha personalidade imediatamente. Fui-a construindo com a sorte de ter encontrado as pessoas certas. Primeiro aprendi música, depois pus-me a tocar todos os dias, a seguir fiz bailes com os amigos, depois chamaram-me para tocar em cabarés, e reunida toda essa experiência, e tendo vontade de compor, compus”.

Manu compôs e obteve de imediato êxito. Podia ter-se deixado a boiar nas mesmas águas, mas não lhe está nos genes. “Nunca tive medo de mudar. Primeiro porque sou muito variado e sou teimoso: toco tudo, jazz, reggae, mas sempre no meu estilo. E depois porque queria ser livre. E posso dizer que o fui”. 

É verdade: foi-o. A prova está nos discos, a que ele não dispensa assim tanta atenção: “É preciso fazer discos, porque é assim que as pessoas te conhecem. Mas um disco é só um momento na tua vida, não é a tua vida. A minha vida é na estrada e eu nunca toco exactamente o que está no disco. Quando o [Thelonious] Monk tocava o Round midnight nunca era igual. Ouvi-lo fez-me despertar para essa magia da música: há muitas maneiras diferentes de fazer a mesma coisa. Tens uma melodia e podes tocá-a de mil maneiras diferentes. Podes tocar em Si bemol ou em Fá e cada vez que mudas de tom qualquer coisa nova acontece”.

Hoje à noite podemos estar certos de duas ou três coisas. A primeira é que Manu estará acompanhado da sua orquestra, “composta por oito músicos, com duas cantoras”; a segunda é que tocará os seus temas “mais dançáveis”; e a terceira é que “nada será exactamente igual ao que está nos discos” porque “há sempre ali um pequeno espaço para a improvisação”. Se estiver minimamente à altura do que conhecemos dos discos ao vivo, então terá tudo para ser memorável.

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