Proclamação de Felipe VI marcada pela austeridade e ausência de emoção

Às zero horas desta quinta-feira, a Espanha muda de rei. Do novo monarca espera-se a mesma discrição que mostrou enquanto príncipe – mas não lhe compete resolver as grandes questões que o país enfrenta.

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JOSEP LAGO/AFP

Esta quinta-feira, 19 de Junho, era dia já reservado no calendário espanhol. Nas comunidades de Madrid e de Castela-e-Leão por ser feriado do Corpo de Deus. No imaginário fértil dos amantes do futebol por se estar na ressaca do jogo decisivo do mundial com o Chile. A abdicação de Juan Carlos I trouxe um significado suplementar: a proclamação do seu sucessor, Felipe VI – mas sem emoção.

“Vieste para os faustos?” Juan, o empregado de mesa que nem uma década de conselhos ensinaram a tirar uma bica, não pergunta. Dá por assente que a presença do jornalista é para a proclamação. Sorri, encolhe os ombros e pergunta por Cristiano Ronaldo. O bar Frontón está decorado com bandeiras espanholas. “É para o jogo, a ver se há sorte…” É assim um pouco por todo lado em Madrid. Nas varandas, cafés e comércios as bandeiras são pela bola. O decisivo embate com o Chile que decorria ainda.

Só no centro da capital, nas lojas de recordações, aparecem objectos para turista com a imagem do novo casal real impressa sobre a bandeira espanhola. Ou a figura de Felipe VI estampada nos mais diversos objectos. Nas pastelarias estão à venda bolachas comemorando o início do novo reinado. É um cenário pobre, nada comparável ao de Maio de 2004, quando Felipe e Letizia se casaram por entre o aplauso popular, com uma vasta representação da classe dirigente mundial e uma forte dose de emoção nacional.
As sondagens dão dimensão e números às sensações. A do oficial Centro de Informações Sociológicas revela que apenas 1% dos espanhóis sentiu inquietação pela abdicação de Juan Carlos. Para 80%, a preocupação é o desemprego. No entanto, esta discrição não significa alheamento. Um estudo de opinião do El País esclarece que 62% dos inquiridos desejam um referendo sobre a monarquia. E que, em caso de consulta, o rei Felipe VI era preferível a um Presidente da República.

Foi assim que se forjou a peculiar ideia dos socialistas: a consequência de serem republicanos é apoiarem a monarquia. “Esta monarquia caracterizou-se por nunca demonstrar simpatias políticas, soube estar acima das tensões, mudanças e dificuldades políticas”, observa ao PÚBLICO Trinidad Jiménez, ex-ministra dos Assuntos Exteriores do Governo de Zapatero – o que, assegura a antiga chefe da diplomacia espanhola, não está garantido com um Presidente saído dos partidos, num país em que a política fora da esfera partidária não existe.

“Os comunistas, que preferiram a dicotomia ditadura/democracia à  monarquia/república, deram agora uma reviravolta, como se a monarquia fosse contraditória com a democracia”, constata Santos Juliá. O catedrático de História Social e Pensamento Político admite, contudo, ser este um debate datado: “Creio que não tem futuro.” Na origem desta mudança, que também afecta o comportamento das centrais sindicais, está o marasmo social face à crise económica. Questionar o regime é a forma de tentar congregar adesões.

Foi a mediatização da presença das bandeiras republicanas, na sequência dos escândalos que afectaram nos últimos anos a família real, nomeadamente a fraude fiscal do casal infanta Cristina-Iñaki, que levou a uma sensação de vertigem política e de temor de uma ruptura próxima. Juan Carlos teve de pedir desculpa pelos gastos de uma caçada aos elefantes no Botswana em companhia de uma aristocrata alemã. Há muito, porém, que os espanhóis já tinham deixado de sorrir perante o relato de episódios da vida paralela do monarca. Por isso teve de sair de cena.

Na cerimónia da manhã desta quinta-feira, o homem que elevou o afecto popular à categoria de classificação política com o juan-carlismo, está ausente. Apenas comparece ao lado do novo monarca na varanda do Palácio Real, na Praça do Oriente. Juan Carlos, que desde a meia-noite desta quinta-feira deixa de ser rei, não vai estar no Parlamento, nem na recepção aos dois mil convidados. Manhã cedo, é ele que coloca a faixa vermelha de capitão general ao seu filho no Palácio da Zarzuela. A partir daí cede-lhe o protagonismo. Com a proclamação de Felipe VI também muda a foto da família real. As infantas Elena e Cristina desaparecem.

O virar de página que um novo reinado sempre encerra não fica por aqui. Na manhã desta quinta-feira, as 120 mil bandeiras espanholas que engalanam o trajecto do Rolls-Royce fechado, opção escolhida por motivos de segurança, foram iniciativa da Câmara de Madrid. E os empresários da cidade, por sua conta, encomendaram dezenas de milhares de cartazes com a foto do casal real. Não há espontaneidade popular.

Recuperar o ânimo implica novos gestos. A austeridade da cerimónia, a ausência de convidados estrangeiros, a sobriedade com que Juan Carlos assinou a sua abdicação nesta quarta-feira são sinais do novo estilo. Com um poder limitado à moderação e à condição de árbitro, Felipe VI tem de marcar o seu estilo próprio. E a contenção vai ser sinal de distinção. “O príncipe Felipe desempenhou com prudência uma função sem clara definição, nunca teve uma actuação fora de tom, nem a tentação de demonstrar as suas preferências”, constata Santos Juliá – o que, para o historiador, é um bom augúrio da acção do já rei.

Não há emoção ou indignação. Não estão oficialmente convocadas manifestações de rejeição para esta quinta-feira. Os peritos da polícia notam uma progressiva diminuição dos protestos contra a monarquia. É provável que nas Portas do Sol, no final de um dia que a meteorologia prevê de canícula, haja uma concentração com as bandeiras tricolores da república. A polícia teme outras formas de protesto e está em alerta para ciberataques à rede eléctrica, aos bombeiros e outros serviços públicos.

Não são esperadas manifestações de carácter ideológico. E muito menos protestos em massa. “Os republicanos são mais emocionais, nostálgicos da bandeira tricolor [republicana, vermelha, amarela e violeta], olham mais para o passado que para o futuro”, considera José Ignácio Torreblanca, professor de Ciência Política. “E a república terminou mal, com uma guerra civil, as pessoas não querem resgatar essa memória”, destaca Torreblanca.

Até porque não é tarefa do novo rei emendar os erros que a classe política cometeu nos últimos anos, ao ponto de ser considerada uma casta à margem das dificuldades da sociedade. “Há a expectativa de que o papel de Felipe VI seja mais ajustado à sociedade de hoje, que é mais exigente, mais transparente e mais difícil de contentar”, refere Trinidad Jiménez. O cenário de contribuir para um entendimento territorial sugerido por alguns sectores na questão da Catalunha, é excluído pela antiga ministra dos Assuntos Exteriores: “Isso compete ao Governo, seja ele qual for, tal como combater a crise económica ou a corrupção.”

Visita a Portugal no arranque de Julho
Será no arranque de Julho, provavelmente nos primeiros dez dias do próximo mês, que Felipe VI e a rainha Letizia visitam oficialmente Portugal na sua condição de casal real. Para trás ficam oito visitas feitas enquanto príncipes das Astúrias.

Depois de uma ida ao Vaticano e de uma visita a Marrocos, Lisboa será o destino seguinte dos monarcas. Sempre num formato minimalista: uma curta estadia de algumas horas, sem dormida. Após Portugal será França, concluindo o périplo que a diplomacia espanhola já tornou tradicional. A visita aos vizinhos, embora o encontro com o Papa Francisco seja a segunda, depois de terem participado, em Março de 2013, na cerimónia de entronização do novo Papa. Também em Maio de 2004, após o casamento, a primeira visita de Felipe e Letizia foi à Santa Sé, onde então foram recebidos em audiência por João Paulo II.

A grande apresentação internacional do novo rei será em Setembro, na Assembleia Geral da ONU, onde pedirá o voto para a candidatura espanhola ao Conselho de Segurança. Uma batalha da diplomacia espanhola que tenta assegurar os 129 votos de que necessita, ou seja, dois terços dos 193 países- membros das Nações Unidas.

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