Um museu para o 25 de Abril - só que vivo

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Joana Craveiro está a fazer um trabalho de reconstituição “quase detectivesco” do período que decorre entre a implantação do Estado Novo e o fim do PREC

De que é que não falamos quando falamos do antes, do durante e do depois do 25 de Abril (ou seja, de uma boa metade do século XX português)? Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, colecção de sete palestras performativas sobre o Estado Novo, a Revolução e o Processo Revolucionário Em Curso (PREC) que Joana Craveiro está a construir há três anos, parte justamente dessa pergunta, peça fundadora de uma pesquisa “histórica, política e afectiva” sobre as “omissões, revisões e rasuras” que afectam (e empobrecem) a história recente de Portugal. Além de um espectáculo final resultante das sete palestras, que terá a sua estreia em Novembro no Negócio da galeria Zé dos Bois (e uma pré-apresentação em Agosto, no Citemor), Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas é também a base da tese de doutoramento sobre transmissão da memória política em Portugal que a actriz e encenadora está actualmente a fazer na Universidade de Roehampton, em Londres.

Até lá, algumas das sete palestras performativas vão tendo uma vida própria — é o caso de Quando é que a Revolução acabou?, o sexto capítulo do museu vivo de Joana Craveiro, que amanhã será apresentado no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira, integrando o ciclo de conferências e de cinema documental paralelo à exposição Além da Ucronia — Histórias Não Vividas do 25 de Abril. Logo a seguir, Joana levará parte do museu ao Hemispheric Institute, em Montréal (21 a 28 de Junho), e ao congresso da Associação Internacional de História Oral, em Barcelona (9 a 12 de Julho). “Tenho ido falar da nossa história recente a muitos sítios, acho que é muito relevante e também muito sintomático”, diz ao Ípsilon, explicando que esta viagem parte de uma vontade de “desmontar as narrativas oficiais” sobre três períodos cruciais do século XX português e as “explicações simplistas sobre como chegámos até aqui” que se vulgarizaram a propósito da crise. Os objectos do seu museu — que é também o museu pessoal de uma portuguesa que nasceu depois da Revolução e o museu colectivo da “geração da pós-memória” — vão desde as “construções nacionais” sobre as quais se funda o Estado Novo e as formas de resistência (nomeadamente a compra de livros proibidos) que as acompanham (tema da primeira palestra, Actos de Resistência) até aos dias turbulentos da descolonização (Espantados de Regressar), que de resto a companhia fundada por Joana Craveiro em 2001, o Teatro do Vestido, acaba de abordar num espectáculo estreado em Viseu, Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram. Passando, claro, por um período que a actriz considera especialmente mal resolvido: “Parece-me que há uma tentativa de negativização do PREC, que é um processo com altos e baixos, claro, mas absolutamente ímpar na Europa. Interessa-me perceber de onde é que vem esse revisionismo, esse preconceito generalizado sobre os ditos ‘excessos da Revolução’ que contamina a narrativa dominante.”

Apresentadas como pequenas “lições” apoiadas em abundantes materiais bibliográficos — trata-se, afinal, de um museu, ainda que vivo — e na recolha de testemunhos de “pessoas comuns”, que se transformam em “personagens reais” da dramaturgia deste espectáculo, as sete palestras são também uma reconstituição “quase detectivesca” do passado pessoal e colectivo. “Assumo uma voz subjectiva, que é a minha e também a da geração da pós-memória, que tem dúvidas, que tem perguntas, que tem ironia. Quis investigar também dentro da minha própria família porque havia muitas coisas que até hoje não sabia e porque a transmissão da memória no contexto familiar é determinante neste processo de assimilação do passado”, resume. Para ela, para todos: não há português que não esteja representado na colecção deste museu revolucionário em curso.

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