O século em que a História se tornou cinema

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JOSÉ MARIA FERREIRA

Andrei Ujica, autor de uma trilogia sobre o fim dos regimes comunistas na Europa, fez do arquivo histórico matéria-prima, interrogando a relação entre os acontecimentos e a sua captação.

Andrei Ujica, que esteve recentemente em Lisboa para participar na Conferência Internacional de Filosofia e Cinema Thinking Reality and Time Through Film, organizada pelo Centro de Filosofia), nasceu em 1951 em Timisoara, na Roménia. Estudou literatura em Bucareste e em Heidelberg, e foi essa formação que lhe assegurou o lugar de professor universitário algum tempo depois de ter passado a viver na Alemanha, em 1981. Em 1990, porém, abandonou a literatura e começou a fazer filmes e, em 2001, tornou-se professor de cinema na Escola Superior de Artes e Design, de Karlsruhe, integrando assim um famoso grupo que fez desse centro universitário um lugar muito importante no campo dos estudos artísticos e da filosofia. Ujica desenvolveu assim o seu trabalho ao lado de figuras tão notáveis como Peter Sloterdijk, Hans Belting, Boris Groys e Peter Weibel. Este último, que também esteve em Lisboa para participar na mesma conferência, foi o fundador — e é ainda o director — do ZKM, acrónimo de Zentrum für Kunst und Medientechnologie. O ZKM é também um museu, mas é muito mais do que isso: é o mais importante centro de estudos, na Alemanha, sobre a relação entre arte e multimédia. É aí que Ujica dirige desde 2002 um instituto de cinema.

O primeiro filme que realizou foi em regime de co-autoria, com Harun Farocki, um realizador nascido na República Checa, também a viver na Alemanha e naturalizado alemão: Videograms of a Revolution (1992). Utilizando imagens de arquivo de vídeo-amadores e de profissionais do cinema e da reportagem, Ujica e Farocki reconstruíram uma cronologia visual dos dez dias da revolução romena, desde as sublevações populares à execução de Ceausescu e da mulher. A partir desse imenso material de arquivo, constituído por fragmentos da realidade capturados por câmaras nos locais mais importantes de Bucareste (imagens-movimento e não fotografias), os cineastas montaram novas sequências, como se o conjunto imenso e heteróclito de imagens fosse o resultado de filmagens, por várias câmaras, para o mesmo filme.

Videograms of a Revolution é um objecto fílmico imponente, que traz uma dimensão nova — no plano da realização, da montagem e do uso do arquivo — para o capítulo das relações entre a História e o cinema. A propósito desse filme, Ujica escreveu um texto onde enunciava um princípio que será o ponto de partida da conversa que tivemos com ele e que a seguir iremos transcrever. Esse texto começa por esta afirmação: “Nós sabemos que o século XX é fílmico. Mas foi só com o advento da câmara de vídeo e das crescentes possibilidades de registo que ela oferece que o processo de fimificação da história se completou.”

A Videograms of a Revolution, seguiu-se Out of the Present, o segundo de uma trilogia que se completararia, em 2010, com Autobiografia de Nicolae Ceausescu. Out of the Present utiliza as imagens filmadas do cosmonauta Sergei Krikalev durante a sua missão na estação espacial MIR. Durante os dez meses que permaneceu no espaço (de Maio de 1991 a Março de 1992), o dobro do tempo que tinha sido planeado, este cosmonauta assistiu ao colapso da União Soviética; quando regressou à Terra, o seu país já se chamava Rússia. O filme centra-se, portanto, numa pessoa que observou o fim de uma época histórica a partir de um ponto tão elevado que se poderia dizer que é um lugar exclusivo dos deuses. Mas a sua observação está liberta de qualquer comentário analítico. Autobiografia de Nicolae Ceausescu, por seu lado, é a história do ditador romeno reconstituída a partir do arquivo de imagens (também aqui, filmes e nunca fotografias) encomendadas pelo próprio Ceausescu (que gostava muito de ser filmado) e pela máquina de propaganda do regime. Mais uma vez, Ujica responde a um desafio que resulta num novo subgénero do filme histórico. E tal como tinha feito com Farocki para os acontecimentos, faz agora para uma figura: reconstrói a sua vida pública (mas com uma forte carga psicodramática) com as imagens de arquivo, algo que só recentemente se tornou possível. O filme começa e acaba com as mesmas imagens: Ceausescu e a mulher, lado a lado, atrás de uma mesa, a serem interrogados, e recusando-se com veemência a reconhecer qualquer legitimidade ao julgamento sumário que acaba na execução. O cineasta romeno chama a atenção para o nível de ironia do título do filme: “Chamei-lhe assim para indicar a perspectiva, porque trabalho com imagens de propaganda. Por isso, a única perspectiva narrativa possível era a do próprio Ceausescu, das imagens que ele tinha encomendado. Trata-se do seu olhar, o mundo é visto pelos seus olhos. Mas a partir dai começa todo um jogo de ironia, de desconstrução dessa imagem, de descoberta das fissuras do seu discurso de propaganda. É como se assistíssemos à auto-destruição dessa aldeia de Potemkin, que é a propaganda. Para fazer uma biografia, e não uma autobiografia, eu não teria imagens.” Acrescenta que procurou encontrar em todo o olhar de propaganda um olhar humano, o que dá a Ceausescu, no filme, uma dimensão psicológica suplementar: “Ele tinha um olhar duplo e não era de modo nenhum um idiota, tinha a consciência da sua aldeia de Potenkin, da realidade que estava por trás, das resistências da realidade à utopia.”

Explicando a sua visão de que existe um vínculo essencial entre os acontecimentos históricos do século XX e o objecto fílmico, no sentido em que o filme se torna a máquina de visão da História, Ujica desenvolve a sua concepção de que cada época histórica é consubstancial a um determinado medium: “Escrevi sobre isso num texto de apresentação do fime que fiz com Faroki, em 1992. Dizia que, do meu ponto de vista, existe sempre uma relação entre a História e os media. A História europeia moderna é teatral entre Shakespeare e Schiller, isto é, a unidade de base na qual ela se manifesta é o palco, a cena dramática. Depois torna-se romanesca, no século XIX, com o romance realista, até Tolstói. E, com a invenção do cinema, torna-se cinematográfica. O século XX é o século do cinema, o que significa que a unidade de base na qual se manifesta a História é a sequência, com as sua unidades mínimas, o fotograma e depois o videograma.”

A História como psicodrama...

O trabalho cinematográfico de Ujica é feito a partir do arquivo que, para ele, não conhece hierarquias: não há uma diferença de valor entre as imagens registadas por um profissional, para a televisão, e as de um amador. O seu critério de exclusão incide sobre uma outra diferença: aquela entre a imagem-movimento e a imagem fixa: “Nunca utilizo a fotografia, o meu interesse está concentrado na imagem-movimento, que é sempre uma conservação de tempo, fragmentos de tempo registado. E isso corresponde a uma grande cesura na história dos documentos históricos. Um fragmento de tempo conservado contém sempre um fragmento da grande narrativa histórica e diz respeito a um fragmento da psicologia. Temos assim ao mesmo tempo a grande narrativa histórica e a sua componente psicodramática. É a partir de fragmentos de tempo conservado que se pode reconstruir a História. Mas graças ao desenvolvimento tecnológico, a multiplicação do registo de imagens-movimento cresceu exponencialmente e chegámos a num estado completamente inflacionário do registo da realidade.”

Essa inflação trouxe também consigo novas possibilidades ficcionais e de manipulação, o que pode colocar sérias questões quando se trata da reconstrução de acontecimentos históricos. Mas para o cineasta nada de importante passa por aí: “Cada vez acredito mais que a oposição ficção-documento não é relevante para a construção de um discurso histórico. Creio que é sobretudo uma ilusão que vem dos documentos escritos, que estabeleceram uma crença na objectividade do documento. Depois, com o aparecimentos de meios técnicos de registo da realidade, como a fotografia e o filme, acreditou-se que se estava a captar a realidade. Por um lado, isso é verdade. Mas todos os documentos, escritos ou em imagem, contêm um elemento psicológico e de subjectividade. Além disso, nas imagens-movimento temos fragmentos da grande narrativa histórica, incluindo a psicologia e a relação dramatúrgica entre as personagens de uma sequência. Todo esse lado artístico, digamos assim, da narrativa histórica que é feita pela narração e pela dramaturgia faz parte da historiografia. Não acredito na possibilidade de ela ser uma ciência objectiva.”

Desenvolvendo ainda esta ideia, Ujica dirá que o sentido da História consiste na narratividade e que só é possível compreendê-lo a partir do momento em que podemos reconstruir o fluxo histórico. E essa reconstrução pode ser feita de maneira mais adequada com os meios artísticos do que com os meios científicos da historiografia. A ciência da História quantifica e analisa, enquanto o romancista e o cineasta que trabalham a partir do arquivo fazem um trabalho de integração dos documentos. Encontram o fio da narração histórica e a dimensão psicológica na constituição do processo histórico. Argumenta: “O historiador, com a sua ciência, constrói um discurso secundário a partir do arquivo, o narrador propõe um discurso primário.”

... e como propaganda

Quanto à dimensão colossal dos arquivos de imagens, graças ao aparecimento dos pequenos aparelhos de registo de fragmentos da realidade, Ujica lembra que foi precisamente no final da década de 80 do século passado, na época da revolução romena, que esse aspecto começou a ganhar relevo. As pessoas tiveram a coragem de sair com as suas pequenas câmaras. E foi isso que permitiu colar e montar em sequências sequência os “videogramas de uma revolução”. Trata-se de um filme-ensaio, analítico, que procura mostrar e compreender esse novo mecanismo de documentação. Conclui Andrei Ujica: “Chegámos então a esse estádio indicado por Borges no seu conto Funes el memorioso, a história de uma personagem que não esquece e que dobra a realidade.” No entanto, o poder performativo das imagens — ou seja, o seu efeito sobre a acção —, que se tornou um lugar-comum e tem sido amplamente glosado por causa de alguns acontecimentos históricos, é relativizado pelo cineasta: “O coeficiente de renovação do mecanismo histórico é muito pequeno. Existe uma convicção largamente difundida de que cada meio técnico novo vai revolucionar a percepção da História. Não acredito nisso. O que a imagem-movimento trouxe de novo foi a possibilidade de conservar, pela primeira vez, o tempo. Isso foi de facto uma revolução. Mas já a fotografia tinha tido efeitos semelhantes sobre o comportamento das massas. Foi com fotografias muito impressionantes da Guerra do Vietname que se provocaram manifestações da juventude. E já na Guerra da Crimeia, no século XIX, com artigos escritos, se tinha provocado algo parecido. Foi sempre assim: foi o testemunho de Lucrécia que provocou a indignação da população de Roma que destruiu a monarquia e fundou o Império romano. Hoje utilizam-se imagens-movimento, mas o mecanismo que provoca reacções timóticas, de indignação das massas, no essencial é o mesmo.” E semelhantes são também os mecanismos de falsificação da História, acrescenta quando confrontado com o exemplo do que aconteceu em Timisoara, onde a televisão simula um massacre que não existiu, mas que legitimaria o novo regime: “Os mecanismos de falsificação da História foram sempre imensos. Não há nada mais manipulável do que um testemunho ocular. Toda a historiografia dos antigos cronistas não é senão literatura de propaganda. A propaganda existe desde o início da historiografia.”

O conceito e o processo de Andrei Ujica situam-se assim do lado oposto à estetização de uma Leni Riefensthal ou até de um Eisenstein. E quebram todo o elemento épico. Tendo feito, para a Fundação Cartier, uma curta sobre o deserto (a partir da viagem de Pasolini à Palestina, para as filmagens do seu Evangelho) e encenado uma conversa entre Paul Virilio e Svetlana Alexievitch sobre os acidentes históricos, Andrei Ujica já não acredita hoje na possibilidade de convergência entre o discurso cinematográfico e o circuito das exposições, algo que no início dos anos 90 chegou a ter alguma expressão por causa da crise de distribuição do cinema de arte.

Depois da sua trilogia sobre o colapso do comunismo no Leste da Europa, Andrei Ujica vai partir para a realização de um novo projecto de longa duração sobre a emergência da cultura de massas. E começará com um filme que se ocupa de um momento culminante da cultura pop: o concerto dos Beatles em 15 de Agosto de 1965 no Shea Stadium, de Nova Iorque, o primeiro num estádio e o ponto culminante da beatlemania.

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