Nicole Kidman no principado da irrelevância

Ouvir o realizador Oliver Dahan falar do filme Grace de Mónaco é ouvi-lo falar de outro filme, aquele que ele não conseguiu fazer.

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Grace de Mónaco, de Olivier Dahan, filme de abertura da 67.ª edição do festival de Cannes
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Grace de Mónaco, de Olivier Dahan, filme de abertura da 67.ª edição do festival de Cannes
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Grace de Mónaco, de Olivier Dahan, filme de abertura da 67.ª edição do festival de Cannes
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Grace de Mónaco, de Olivier Dahan, filme de abertura da 67.ª edição do festival de Cannes
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Nicole Kidman durante a sessão de fotografias em Cannes AFP PHOTO / VALERY HACHE
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Tim Roth e Nicole Kidman, os actores de Grace de Mónaco AFP PHOTO / VALERY HACHE

Num jantar num luxuoso restaurante de Cap d’Antibes, perto de Cannes, o realizador italiano Dino Risi estava sentado à mesa de uma ex-actriz que era princesa do Mónaco, Grace.

Tocavam três orquestras e Risi, já bebido, arriscou perguntar-lhe se ela, podendo voltar atrás, se casaria de novo com o príncipe dos monegascos, Rainier. “É uma pergunta indiscreta”, respondeu a princesa. E riu-se. Mas foi na altura da mousse de chocolate que Grace do Mónaco voltou atrás: “Não”.

Isto conta Dino Risi nas suas memórias, I Miei Mostri (2004). Grace de Mónaco, de Olivier Dahan, filme de abertura da 67.ª edição do festival de Cannes (fora de concurso) nada tem a ver com Risi, nem com a ferocidade da vida. Mas esse “não” é um fantasma que paira. Até é uma expectativa que se leva para dentro da sala depois das declarações dos príncipes do Mónaco, Alberto, Carolina e Stephanie, que se distanciaram do filme, considerando que ele se baseia “em referências históricas e literárias erradas e duvidosas”, fazendo por isso saber que não estariam presentes na sessão de gala, quarta-feira à noite, para verem o filme sobre os pais, Grace e Rainier.

A revelação de um “não”, promessa de escândalo palaciano na Côte D’Azur, talvez até espreite no primeiro terço, quando, há apenas seis anos no principado, Grace (Nicole Kidman) é tentada por Alfred Hitchcock para regressar ao cinema interpretando a frígida cleptomaníaca de Marnie. Mãe de já dois filhos, um palácio propício à solidão conjugal que a afastava cada vez mais de Rainier (Tim Roth), Grace vacila, pergunta-se o que está ali a fazer. Há aquela legenda inicial, citação da própria: “A ideia de que a minha vida é um conto de fadas é ela própria um conto de fadas”.

Grace de Mónaco começa por parecer que vai revelar o embuste do fairy tale, mas logo se percebe que a legenda é apenas arabesco e que tudo, até as liberdades ficcionais que Dahan assume, são apenas guarda-roupa para o conto de fadas a que o filme quer ir como quem vai ao baile.

Esta é a história de uma actriz que deixou de ser actriz para se casar com um príncipe (mais ou menos) encantado e que afinal descobriu que a sua verdade não era deixar de ser actriz mas continuar a sê-lo, vestindo a camisola do Mónaco, construindo hospitais e organizando bailes, como aquele da Cruz Vermelha com que salvou o principado das garras do general De Gaulle que se preparava para o anexar – manobra de sedução num pequeno território sem exército que faz de Grace uma pioneira das princesas peritas na guerrilha da manipulação que teria em Diana de Gales, anos depois, a sua verdadeira rainha.

E no fim disso tudo, Grace ganha de volta o príncipe. E ela fica sereníssima. É uma love story – por isso Nicole Kidman dizia, em conferência de imprensa, que entendendo a ausência dos Grimaldi, porque é “incómodo” ver-se um filme sobre os pais, e porque num filme há um potencial de invasão da privacidade, quer que os filhos de Grace e Rainier saibam que não existiu “malícia” e que foi tudo “feito com amor”.

Mas também com fôlego infantil. E sem talento para tornar palpável a complexidade com que, diz o realizador, quis abordar a história. Ou então esconde-a a fotografia tipo cobertura de bolos assinada por Éric Gautier, que copia o tecnicolor da época para pintar as figuras de papelão que, de Kidman aos secundários, estão imobilizadas no seu décor de convenção (excepção feita ao Rainier de Roth, única personagem onde reside enigma ou que, mérito do actor, não tem a pretensão de resolver o seu enigma). Ouvir Dahan falar do filme é ouvi-lo falar de outro filme, aquele que ele não conseguiu fazer. Referiu-se, por exemplo, ao plano-sequência de abertura, que parte da rodagem de um plano de Ladrão de Casaca (Hitchcock, 1955) e acompanha Grace até ao camarim, terminando com o reflexo do seu rosto ao espelho. Que é o rosto de Kidman, obviamente. Dahan fala assim: passar de Grace Kelly a Nicole Kidman sem cortar, “sem mudar de assunto”. Isso é que era bom… mas não é.

Nicole até parece que ajuda, quando diz que há coisas comuns na sua história e na história de Grace – sobre isso falou muito com o realizador, revelou –, embora nunca se tenha casado com um príncipe (imediatamente corrige, sim, Keith Urban é um príncipe, da country). Nicole ajuda com a conversa, mas não ajuda com o seu “jogo”, sem densidade ou mistério – sem passar, nem ela nem o filme, de uma, Nicole, a outra, Grace. Fica tudo em conversa, o filme é o pequeno principado da irrelevância.

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