Deus passou por aqui e esqueceu-se de voltar

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Durante 33 anos, Donald Ray Pollock trabalhou numa fábrica de papel e bebeu para esquecer; quando ficou sóbrio, voltou a estudar e decidiu ser escritor, para “ver o que acontecia” tibor Bozi/Corbis

Tudo é tão literário na vida de Donald Ray Pollock — um operário que aos 50 anos começou a teclar livros dos seus autores favoritos até aprender a escrever — que um romance sobre ele seria pouco verosímil. Chega agora com uma ficção poderosa num lugar sem ponta de redenção: Sempre o Diabo

Se olhar para fora, através da janela principal do antigo estábulo onde escreve todas as manhãs entre as seis e as onze, Donald Ray Pollock avista a velha igreja presbiteriana do outro lado da rua. Mais acima está o cemitério de Grandview, onde costuma ir passear o cão, Barney. Daí tem-se a percepção da escala de Chillicothe, a primeira capital do Ohio, cidade com pouco mais de 20 mil habitantes na margem do rio Scioto, Condado de Ross — um aglomerado de edifícios baixos, pontuado por dois ou três torreões de igrejas, rodeado por quintas. Se olhar pela janela lateral, vê as traseiras da casa onde vive com a mulher, e ainda duas macieiras grandes. Pois é mesmo aqui, neste ambiente onde quase nada parece acontecer, que Ray Pollock cria um universo literário violento, grotesco, estranho apenas para quem não conhece o Sudoeste da América nem leu William Faulkner ou Flannery O´Connor. Não há cópia, só o reconhecimento de uma paisagem e um modo de a contar. Sem tréguas. Estamos no imenso Sul dos Estados Unidos. Mas será mesmo a geografia o mais determinante na hora de escrever? Donald Ray Pollock responde nada mais nada menos do que com uma frase de Flannery O’Connor: “Nada acontece em lado nenhum.” Está ao pé de duas árvores, à distância de um computador. Tenta-se perceber um pouco da “verdade” inquietante das histórias que conta, e tudo ganha outra dimensão quando se conhece a sua biografia.

Magro, às vezes com óculos de aros finos, um cigarro quase sempre presente, feições vincadas conferindo idade a um rosto que podia ser o de um miúdo, Donald Ray Pollock quis para si uma vida nova ao recusar ver-se como o pai na velhice, horas seguidas num sofá em frente ao televisor. A projecção do seu futuro provável incomodou-o. Aos 50 anos, e após 33 a trabalhar como operário numa fábrica de papel, despediu-se. “Talvez fosse a tal crise da meia-idade”, brinca, sem nunca se alongar nas palavras, carregado do mesmo silêncio que as suas personagens usam nos momentos decisivos — um silêncio que ele encontrou antes da literatura mas que a torna tão eficaz quando, por exemplo, o escritor, qualquer escritor, sabe entrar em casas de gente sem livros e fazer delas a sua matéria.

Que escrita serve mais essa ausência? Terá sido a pergunta de Ray Pollock quando, sem a ter formulado, se fez leitor compulsivo. “Quando eu era pequeno não havia livros em casa, nem sequer a Bíblia, mas havia sempre umas revistas más; histórias, de crimes verdadeiros ou de amor. Devorava isso tudo até descobrir a biblioteca da escola”, conta, sem romantizar a existência normal de um rapaz nascido em 1954 numa terra então esquecida, e hoje fantasma, chamada Knockemstiff (nome pouco traduzível que significa qualquer coisa impulsiva como um “vamos dar cabo deles”, soco misericordioso). “Eu era o que se costuma chamar um ‘miúdo problemático’, sempre metido em sarilhos, mau aluno. Desisti da escola aos 17 anos.” O resumo da infância é breve e a adolescência sintetiza-se numa revolta sem consequências. “Enquanto cresci, o meu grande objectivo era sair do lugar onde tinha nascido. Pouco parecia possível por ali.” Ficou. Foi ficando. Mudou-se apenas para Chillicothe, a poucos quilómetros. “A ‘vida’ foi tomando o seu rumo: arranjei um emprego e casei e talvez achasse que não havia alternativa a não ser ficar e continuar a trabalhar.” Além da fábrica, só havia uma ocupação: beber. “Foi assim durante anos até que fiquei sóbrio.”

As respostas imitam a escrita. Não há muletas para atenuar o discurso directo. Continuava viva a memória do primeiro livro a sério, lido muito tempo antes: The Haunted Bookshop, de Christopher Morley (1919). Donald tinha 11 anos. “Nunca tinha visto uma livraria e havia algo na descrição daquele lugar que me fascinou.” Diz isto como quem procura uma origem, o primeiro sinal, como a mais supersticiosa das personagens que viria a criar, como muitas pessoas que foi conhecendo e vivem perto, mais ou menos fanáticas, crentes de uma fé sempre a desafiar doutrinas.

Estamos no Sul de O’Connor (ou lá muito perto), que escreveu que O Céu é dos Violentos (1955) oficializando na literatura, também ela, esse desafio à justiça apregoada por Cristo. Ray Pollock continua na senda. Deus está presente aqui nem que seja pela ausência. Nesta conversa, o escritor vai invocar Deus para explicar a sua fidelização ao lugar. Será em vão? Quem já o leu reconhecerá um tom, espécie de molde comum a quem partilha um quotidiano que depois se multiplica em modos muito singulares de viver o sagrado. “Não sou o que se pode chamar uma pessoa religiosa, embora frequente uma igreja episcopal quase todos os domingos. Gosto do ritual e da música e acredito que o mundo seria melhor se cada um respeitasse os dez mandamentos. Mas cresci rodeado por pessoas que acreditam literalmente na Bíblia e sempre me interessei pelo modo como esse tipo de fé leva aos comportamentos mais loucos.” Antes da escrita, em simultâneo com a leitura, houve sempre um Pollock observador. “Talvez todas as pessoas que lêem muito se interroguem sobre se poderiam ser escritores”, diz, por fim, acerca do ofício tardio que o tem revelado como um dos nomes mais originais da América desde que, em 2008, publicou a série de contos Knockemstiff. O título vem ilustrado com a placa que assinala a geografia da vida e da literatura de Donald Ray Pollock. O romance Sempre o Diabo (2011) é o seu segundo livro, agora editado em Portugal pela Quetzal, e confirma a proximidade com os melhores prosadores do lado mais negro do interior americano.

Começa assim: “Numa manhã triste no final de um Outubro chuvoso, Arvin Eugene Russell seguia apressadamente o pai, Willard, pela beira de uma pastagem no cimo de um longo vale rochoso no Sul do Ohio chamado Knockemstiff.” Willard é um ex-militar que regressou do Pacífico Sul em 1945. Sobreviveu à guerra, mas não esquece o soldado esfolado vivo pelos japoneses e pregado a uma cruz feita de palmeiras. “Desde esse dia havia qualquer coisa na cabeça de Willard que mudara para sempre.” Com Willard Arvin, entramos num mapa — agora estendido à Virgínia — marcadamente rural, quase sempre de uma tristeza desoladora, até nas gargalhadas. É o lugar da caneta certeira de Pollock. “Vivi toda a minha vida em Ross County e isso determina no meu trabalho”, refere o escritor, voltando à tal “verdade”. “Este é o único lugar de que conheço o suficiente para poder escrever de forma honesta. Quando andava à procura do que devia ser a matéria da minha escrita, do que poderia escrever com o tal conhecimento, encontrei a melhor resposta na violência, na secura e na estranheza do Sudoeste americano.” E aqui, polindo as referências, ficou mais próximo de Faulkner e de O’Connor do que dos subúrbios das histórias de John Cheever ou da Espanha de Hemingway, outros escritores que admirava pelo estilo.

Dentro da verdade

As personagens de Sempre o Diabo nascem dessa condição única de pertença a um atlas preciso. Há um homem bom numa terra que tem pouco a ver com isso. Bem e mal, moral e imoral, virtude e pecado, Deus e o Diabo andam por ali numa conjugação que desafia qualquer arrumação convencional. A trama foi delineada ao milímetro, mas o escritor parece apenas seguir, sem se fazer notar, uma rota determinada por leis a que são alheios tanto ele como os que ele inventa. É um dos grandes méritos de Pollock: fingir que não está lá, que não há ninguém a comandar as personagens na sua perdição a não ser um destino mais de acordo com o Diabo do que com Deus. Como se não fosse ele a dar os cheiros, os sentidos; a transmitir a sequência de imagens e o pormenor de forma a que o leitor se sinta no centro da acção. É um sítio muito perturbador.

Podia ser um filme em que o suspense é comandado por um movimento de câmara nunca óbvio. Que começa em 1945 e termina na década de 60. Na história de Arvin Eugene Russel, o órfão de dois pais bonitos num mundo onde os feios estão em minoria, que cresce como um justo sem saber muito bem o que isso significa. Na história de Sandy e Carl, o casal de assassinos que fotografa as suas vítimas na hora da morte num ritual sádico. Ela, irmã do xerife criminoso, corrupto; ele, candidato frustrado a fotógrafo de celebridades que foge da Califórnia. Na história de Lenora, filha de Roy, o pregador ingénuo que come aranhas e se faz acompanhar por Theodore, um aleijado perverso que o leva a matar a mulher acreditando que a pode ressuscitar. Ou na história de outro pregador, Preston Teagardin, um intrujão violador de raparigas virgens. No modo como todas as histórias são, afinal, uma.

Cada personagem nasce de um invulgar talento para tornar simples a complexidade humana até essa simplificação ficar no osso. Não há excessos a não ser os da própria caricatura (des)humana, tal como a vê Pollock. Leva a sua condição de observador ao limite, tão presente que se apaga, não querendo deixar rasto de si numa escrita que se revela, a cada linha, resultado da enorme atenção ao outro. O objecto são sempre os outros, mas é como se Pollock estivesse em todos eles. Fala-se em Pollock e vem a palavra alteridade. Ele continua a preferir falar de “verdade”. Cortante, inclemente, contada por alguém que poderia ser também protagonista de outra história, com menos sangue, mas igualmente desarmante. Minimiza essa importância. “Acho que toda a gente pode ser, em potência, uma grande personagem: a empregada do Wal-Mart, o motorista de autocarro, qualquer pessoa. Tudo depende do escritor. Eu tive sorte, muita sorte, quando decidi começar a fazer mais qualquer coisa com a vida que me restava e parece que resultou.” Abre parêntesis: “Até agora.”

A nu

Esse final feliz, embora deixado em aberto, é afinal o que distingue a vida de Ray Pollock da dos que com ele cresceram. Resultou de uma decisão inusitada que coincidiu mais ou menos com o momento em que ficou sóbrio e foi para a Universidade do Ohio. Tinha 40 anos. Era estudante em part-time e formou-se em Inglês. No final do curso, a escrita apareceu como a tal hipótese que aos 50 anos passou a perseguir a sério. “Quando decidi tentar aprender a escrever, prometi que iria trabalhar muito durante cinco anos e ver o que acontecia. Ao fim desse tempo soube que queria continuar.”

Nesses anos houve uma reviravolta. O operário alcoólico sem perspectivas, condenado ao isolamento, fez-se escritor. Como? Seguindo um impulso e transferindo para a escrita o método do operário. Copiar, letra a letra, romances e contos dos seus escritores favoritos para lhes captar a essência, o ritmo, e no processo depurar a linguagem. “Foi depois de ler uma entrevista de um escritor, não me lembro agora qual. Ele tinha feito isso. Havia uns seis meses que eu estava a tentar escrever, mas não avançava. Comecei então pelo trabalho dos outros, a teclar uma história por semana. Fiz isso durante 18 meses, num total de 75 histórias. William Faulkner, John Cheever, Denis Johnson, John Yates, Flannery O’Conner, Ernest Hemingway…” Conta ainda que durante esse tempo não se atreveu a escrever uma história sua. Apenas parágrafos soltos quando, pela manhã, lhe custava arrancar com o que se pode considerar um trabalho mecânico. Arriscou. Começou a publicar em revistas, candidatou-se a um curso de escrita criativa na Universidade do Ohio e ganhou uma bolsa. O que se seguiu é público. Donald Ray Pollock faz 60 anos e saiu por fim de Chillicothe por causa do que escreveu. “Estive em Nova Iorque, em Paris, Londres, Barcelona, São Francisco, Chicago e outras grandes cidades. São óptimos lugares para visitar, mas Deus sabe que eu não queria viver em nenhuma. Só consigo suportar multidões durante breves períodos e o único lugar onde realmente me sinto confortável é a minha casa. Onde tenho agora os meus netos e a minha nova mulher. Claro que percebo o apelo, sobretudo quando se é jovem.” Faz uma pausa. Se tivesse mesmo de se mudar, escolheria o Vermont, estado a Norte de Nova Iorque, na fronteira com o Canadá, “o mais próximo que existe de um estado socialista na América”.

Na vida como Pollock a entende, e nas vidas que conta, crime e castigo ou mérito e reconhecimento não são necessariamente o culminar um do outro. “Algumas das minhas personagens mais terríveis conseguem escapar ao que merecem e as melhores vão ao castigo final, tal como na vida real.” Arvin Eugene Russell ou Carl Henderson são apresentados sem filtros, eles e os seus actos, os seus medos, fracassos e traumas. A nu. O mesmo serve para todos os que formam a teia deste Sempre o Diabo. E é fácil imaginar-lhes uma existência além destas páginas, tão verosímeis surgem, apesar do desconcerto que cada um representa. De onde vêm elas no seu desespero e no seu horror? “A sério que não sei, não sei de onde vêm as minhas histórias. Acho que sou inspirado pelo que ouço ou vejo ou escuto contar.”

É assim o Ohio? “Também é assim.” Um lugar pobre, de agricultores solitários e cowboys inclementes com ideias de jovens progressistas; pregadores tarados, oradores excessivos, saltimbancos miseráveis, advogados corruptos, maridos e mulheres sem amor ou com amor de mais; artistas frustrados, gente que vende o corpo e tudo por quase nada. Fugitivos, quase todos, ou com vontade de fugir mesmo quando se limitam a balançar-se na cadeira da varanda, como Charlotte Russell, incapaz de se evadir da doença enquanto Willard, o marido, sacrifica animais como Abraão sacrificou o cordeiro para que ela se cure. Bíblico. Mas é como se Deus tivesse passado por ali para logo se esquecer que aquele lugar, a Sul de Columbus, existe.

 

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