Ai, o tédio, o tédio…

Exibicionismo técnico e cénico, mas também monotonia e superficialidade, marcam a produção da estreia da ópera de Francesconi no Scala apresentada na Gulbenkian.

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A meio-soprano Allison Cook é a Marquesa de Merteuil Rudy Amisano
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O barítono Robin Adams é Valmont Rudy Amisano
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Poucas vezes as imagens são dramaticamente pertinentes Rudy Amisano
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As personagens e o jogo estão circunscritos a um volume, um paralelepípedo sem paredes de frente e de fundo, suspenso a meio do espaço Rudy Amisano
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Rudy Amisano

Quartett, de Luca Francesconi. Realização cénica dos Fura del Baus. Direcção de Susanna Mälki. Gulbenkian, 2 de Abril, às 19h. Duas estrelas.

“Valmont, Valmont, porquê este súbito reaparecimento do meu passado?”, pergunta(-se) a Marquesa de Merteuil logo na primeira fala de Quartett. Valmont, Valmont, que inesperados reaparecimentos, de facto!

Em 1988/89 surgiram seguidos dois filmes baseados em Les Liaisons Dangereuses (1782), de Choderlos de Laclos: primeiro o histriónico Ligações Perigosas de Stephen Frears, a partir da convencional adaptação teatral de Christopher Hampton; depois o pouco recordado mas muitíssimo mais interessante Valmont de Milos Forman – o realizador tinha sido a primeira escolha para o outro projecto, mas recusou e preferiu adaptar, com Jean-Claude Carrière, o romance epistolar original.

Mas algo de muito mais insólito e inédito, tanto mais tratando-se de uma ópera contemporânea, sucedeu agora: em 2011, estreou no Scala Quartett, ópera de Luca Francesconi sobre a magnífica peça de Heiner Müller (1980) com esse mesmo título, “a partir de” ou “sobre o” texto de Laclos (coisa diferente de ser uma “adaptação”, note-se); a 24 de Setembro passado, a Casa da Música apresentou uma notável produção própria, com encenação de Nuno Carinhas, e agora a Gulbenkian retomou a obra na realização cénica dos Fura del Baus, a mesma da estreia absoluta – e fique devidamente esclarecido que nas duas circunstâncias a versão da obra foi a mesma, com as partes corais e as orquestrais de dimensão mais sinfónica a partir da gravação dessas partes no Scala em realização electroacústica do IRCAM.

Atente-se, já agora, a que estas duas apresentações precederam até a produção – a 3.ª, pois, depois das do Scala e da Casa da Música – da Royal Opera House, no seu Linsbury Studio, que ocorrerá em Junho; mas que luxo!

Só que…

Várias vezes no texto se fala de tédio: o “tédio do envelhecimento” físico e sexual que angustia Merteuil, dado, aliás, axial em Laclos ou em Müller, ou no jogo incessante entre ela e Valmont – pois que só eles são personagens, mesmo que “tomando” também o papel de Madame de Tourvel ou “trocando” de identidades –, “as suas palavras entediam-me” ou “vou morrer de tédio tomando a sua lastimável figura”. Infelizmente, por outras razões, o que esta realização cénica suscitou foi o tédio, o tédio…

As virtualidades de um “teatro de imagens” com textos de Müller foram repetidamente evidenciadas em espectáculos de Bob Wilson. A questão não é, pois, essa, é, sim, e ainda que com menos espalhafato que o habitual neles, o exibicionismo, mas também a superficialidade e mesmo monotonia dos Fura.

As personagens e o jogo estão circunscritos a um volume, um paralelepípedo sem paredes de frente e de fundo, suspenso a meio do espaço, sustentado por uma imensidão de cabos, o que, sendo uma possível potencialidade, logo torna também mais distante a relação entre as personagens/cantores/actores e o público que o texto solicita. E tanto mais há distracção quanto, como é usual no grupo catalão, há constantemente projecções, sobretudo em monótonos tons cinzentos, outras não só superficiais como oportunistas, casos de algumas fugazes imagens documentais, de uma manifestação que parece ser das “Primaveras árabes” ou de emigrantes africanos no mar.

Quando Francesconi escreve que “esse trabalho [cénico] é, ao mesmo tempo, um produto do seu tempo – na sua preocupação com o destino da civilização ocidental – e universal”, é a isso que se refere? Então não se chega a perceber. Apenas nas múltiplas reproduções projectadas de Valmont e Merteuil corporalmente envolvidos quando ele “representa” a sedução de Madame de Tourvel, ou, no final, com as imagens da própria câmara suspensa com a agonia da dupla, só nesses dois momentos tantas imagens são dramaticamente pertinentes. É pouco para tanto tédio.

Tal como no Scala, tal como no Porto, os intérpretes foram a meio-soprano Allison Cook e o barítono Robin Adams, a direcção cabendo agora, como sucedera na estreia, a Susanna Mälki. No aspecto musical, neste, sim, houve a fruição das qualidades assinaláveis da obra de Francesconi, mormente nos momentos culminantes que são o belíssimo “arioso” de sedução de Valmont a Tourvel e o crescendo dramático do final. Mas Adams pareceu muito menos implicado do que na Casa da Música, como se a própria direcção cénica, mais trabalhada a nível das personagens na encenação de Carinhas, muito mais superficial com os Fura del Baus, tivesse(m) também tido consequências na sua interpretação.

Para além do insólito da situação, a fruição e apreciação de duas diferentes produções de uma ópera recentíssima em tão curto espaço de tempo foi, de facto, uma experiência inédita. E acabo por ter uma sensação afinal paralela daquela outra perante os filmes, em muito preferindo o trabalho mais subtil de Carinhas, como o de Forman, ao histrionismo dos Fura del Baus ou de Frears.

Depois de tão espampanante demonstração, não se deixa apesar de tudo de lamentar, ainda que vivamente saudando que conste da programação, que essa “ópera-prima” contemporânea que é Written on Skin de George Benjamin e texto de Martin Crimp seja apresentada na Gulbenkian mas em versão apenas “semi-cénica”, a 22 e 23 de Maio – mas fica também desde já a imperiosa chamada de atenção.

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