“Cadê esse avião?”

A vida não está fácil para quem não tem sangue de barata. Por exemplo, cadê esse avião, meu Deus, onde foi que o meteram? Isso não faz sentido. O Obama controla até os meus emails e perde um Boeing?

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Athit Perawongmetha/Reuters

“...a culpa é dele. Sou inocente, Senhor Polícia. Foram os nervos. A vida não está fácil para quem não tem sangue de barata. Por exemplo, cadê esse avião, meu Deus, onde foi que o meteram? Isso não faz sentido. O Obama controla até os meus emails e perde um Boeing? Logo na Malásia? Eu há quinze dias nem sabia onde ficava a Malásia. Agora sei. Melhorou alguma coisa? Só se for para os mesmos... Cadê esse avião? O senhor não é polícia?, deveria saber. Aí tem coisa. E não é boa coisa. Rá-rá-rá! Sou paranoica, eu sei. Dei em doida ainda em miúda. Ele, o Pacheco, sabia. É, não casou enganado. No primeiro dia em que saímos, avisei:

— "Pacheco, cuidado comigo, que eu não sou boa da cabeça”.

Se não acreditou o problema é dele. A minha mãe também era chanfrada. Castrou o meu pai. Rá, rá, rá! E sabe o que ele tinha feito, Senhor Polícia? Nada. A minha mãe olhou para ele e disse:

— "Peste, marido inútil, não fazes nada. Todas as minha amigas são cornudas e tu aí a fazer palavras cruzadas. Não tenho assunto para contar. Peste, vais pagar!"

Mereceu. Os homens não valem nada. A prova é o Pacheco. E o Putin. Rá-rá-rá! Esse tem a mania de anexar. Queria era ver o gajo vir ter comigo, levava era com um barrote na fronha, não anexava nem o tapete da minha porta de entrada. A sorte desses russos é eu não ir lá mostrar para eles com quantas vodcas se faz uma Ucrânia. Mas não saio de casa nem para comprar pão quanto mais para ir a guerra. Sair como? Com esse avião por aí perdido? E se ele cai na minha cabeça? Ah, pois, duvida? Tenho cá uns azares que nem as novenas que faço para São Judas Tadeu resolvem. Ele, o santo, disse-me um dia, com aquela voz do além, voz cavernosa, com eco, voz de fumador quando acorda assustado de madrugada:

— “Eu sou o santo das causas difíceis não das impossíveis, isso é com o Expedito ou com a Rita de Cássia”.

Mas desses santos não gosto. Como não gostava do Pacheco. Por isso matei e matava outra vez. O senhor diz que foram setenta e sete facadas. Rá-rá-rá! Por mim, dava mais umas vinte. Sou maluca, sempre fui. Quando soube que aquele avião tinha sumido, pensei:

— "Dei em doida”.

E dei mesmo. O Pacheco era um descarado. Deixar um avião lotado desaparecer assim sem mais nem menos.. Onde é que eu estava com a cabeça quando casei com aquele imprestável? Eu, que era tão bonita. Olha para o meu corpo, Senhor Polícia, olha para os meus peitos. Põe a mão neles, não tenho mais homem, sou viúva. Isto, estás a ver? São durinhos. Peitos duros, sempre tive, desde miúda. Como é que uma mulher com os peitos duros foi casar com um homem tão feio? O Senhor Polícia viu a cara dele? É, percebo, está difícil de ver, mas não tenho culpa, a faca é que era muito afiada. A culpa é dele, tinha a mania de afiar as facas, como se dissesse:

— "Celeste, mata-me que eu vou sumir com um Boeing".

O Pacheco não gostava de nada, homem sem piada estava ali, Senhor Polícia. Eu falava:

— "Pacheco, vamos fazer umas selfies, vamos atualizar o Facebook?'

E ele dizia:

— “Ah, Celeste, não gosto, vai tu sozinha que eu fico aqui a afiar as facas”.

Que homem chato! Pois hoje, quando vi que acharam umas coisas no mar que podem ser do avião pensei: "Celeste, tu és doida, tens mais é que matar". Os miúdos estavam a ver TV. Pensei em matá-los também, adoro ver criança morta, quando eu era miúda morreu o filho da vizinha, fui ao velório e achei tão bonito... Mas desisti. Criança para morrer grita muito e eu estava com uma dor de cabeça insuportável. Levei os miúdos para a casa da vizinha, a Dona Soraia, penso que ela é árabe, terrorista, tem uma empregada chamada de Aljazira, outra que não vale nada. Deixei as crianças e fui fazer o jantar do Pacheco. Fiz sopa com vidro moído. Eu sou assim, Senhor Polícia, cruel. Rá-rá-rá! Aí o Pacheco chegou. Servi a sopa e fiquei a olhar. Comeu tudinho. Nem desconfiou. Homem burro. Depois começou a passar mal. Disse:

— “Celeste, a minha úlcera estoirou!”

E caiu no chão. Foi quando eu saltei sobre a barriga dele e comecei a dançar o twist. Sempre fui boa no twist. Foi tão gostoso. Não dançava há séculos. O Pacheco começou a vomitar sangue. O homenzinho virou um vulcão escarlate. Rá-rá-rá! Não queria morrer o safado. Gritou:

— “Celeste, és louca!”

Finalmente, percebeu, o trombudo. Foi aí que eu olhei bem nos olhos dele e vi a morte chegar. Nos olhos do Pacheco. Depois do “twist”. E não é que a morte é linda? E o Pacheco, que sempre foi feio, até parecia o Brad Pitt. Então, estava eu ali a dançar na barriga do desgraçado, naquela poça de sangue, quando ele começou a enrolar a língua e a dizer:

— “Ceeeeeleeeeesteeee, euuuuu adooooooroooo-teeee!”

Só não perdi a cabeça porque nunca tive. Agora que vai dizer que me ama? Com esse avião que não aparece a agoirar as nossas cabeças? Apanhei a faca e comecei o serviço. Rá-rá-rá! Foi divertido. Aí ele morreu. De vez. Mas não fossem vocês chegarem, aposto que foi a Aljazira que chamou a policia, não foi?, sabia, não disse que ela não prestava?, não fossem vocês, continuava a matar o Pacheco, rá-rá-rá!, sou doida, Senhor Polícia, sempre fui, eu dizia para o Pacheco:

— “Olha que eu não sou boa da cabeça, vamos invadir a Criméia, vem fazer umas selfies, atualiza o Facebook."

Não quis me ouvir, a culpa é dele, sou inocente, cadê esse avião?, põe a mão aqui nos meus peitos....”

Nota do cronista: esta é uma revisitação de um texto muito antigo de um mundo bem menos paranóico...

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