Um Händel monumental na Gulbenkian

Uma interpretação da oratória Salomão de Händel que enfatizou a grandiosidade massiva da obra e na qual sobressaiu o contratenor Iestyn Davies no papel titular.

Foto
O contratenor Iestyn Davies

Coro e Orquestra Gulbenkian; Iestyn Davies, Inês Simões, Gillian Webster, Mhairi Lawson, Catia Moreso, Thomas Walker, Hugo Oliveira (cantores), Paul McCreesh (direcção); Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian; 21 de Março, às 19h. 4 estrelas (em cinco)

Ao longo da sua carreira como director musical dos Gabrielli Consort  and Players, Paul McCreesh distinguiu-se sobretudo na interpretação das oratórias de Händel e Haydn. Como tal, na sua primeira temporada como maestro titular da Orquestra Gulbenkian, o trabalho passível de ser desenvolvido em torno deste tipo de obras constituía um factor de expectativa. Com a apresentação da oratória Salomão, de Händel, na quinta e na sexta-feira, concretizou-se uma etapa ambiciosa desse processo. Contando com vários solistas de qualidade, com destaque para Iestyn Davies (estrela recente do universo dos contratenores), e tratando-se de uma composição sumptuosa pela sua rica inventividade musical, o sucesso era em parte previsível.

O Coro Gulbenkian tem inúmeras provas dadas no campo da música setecentista e mais uma vez teve uma prestação marcada pela destreza técnica, pelo brilho e pela pujança nas passagens mais exaltantes, estabelecendo vivos diálogos nas secções em que Händel tira partido do duplo coro. Sob a batuta de McCreesh, a Orquestra Gulbenkian mostrou uma certa sintonia estilística com o universo barroco, que tem vindo a ser fomentada pelo trabalho com diversos maestros especializados, ainda que tenha ficado aquém de parte do potencial colorístico da partitura original, o qual apenas pode ser traduzido em pleno através do timbre e das subtilezas dos instrumentos de época. Momentos como a Sinfonia que anuncia a chegada da Rainha do Sabá no início do 3º acto e diversos solos (como os das flautas e oboés) foram porém dignos de nota e uma sólida e dialogante secção de baixo contínuo sustentou os alicerces de um edifício monumental.

No entanto, há algumas opções questionáveis. Apesar dos generosos efectivos corais e instrumentais destinados por Händel a Salomão — conta-se que para estreia em 1749, no Covent Garden de Londres, se previa a participação de cerca de 100 músicos — McCreesh  foi ainda mais longe. As enormes dimensões do coro e da orquestra que encheram o palco do Grande Auditório Gulbenkian traduziram-se por vezes num volume sonoro excessivo nas intervenções corais e os recitativos acompanhados perderam em refinamento. De resto, toda a textura ganharia mais equilíbrio e transparência com forças corais e instrumentais um pouco mais reduzidas. Ainda assim, depois de um primeiro acto regular, a actuação do conjunto foi decorrendo em crescendo no plano artístico, atingindo resultados de elevado nível no final.

No que diz respeito aos solistas, sobressaiu a belíssima voz de Iestyn Davies através de uma interpretação depurada de elegante nobreza expressiva da figura do rei Salomão, cujo exemplo como próspero e sábio governante assumia um forte significado simbólico na recuperação da imagem de Jorge II na Inglaterra de meados do século XVIII, acabada de sair de vários conflitos. Deliberadamente, o libreto enaltece as qualidades do Rei de Israel e omite os pontos menos positivos do seu reinado.

Como 1ª Prostituta, a soprano Mhairi Lawson foi um excelente exemplo de versatilidade vocal, formando o desejado contraste com o ímpeto e a veemência teatral de Cátia Moreso (2ª Prostituta) no célebre episódio da justiça salomónica que põe fim à disputa do bebé recém-nascido pelas duas mulheres. Trata-se do único momento verdadeiramente dramático numa obra que vive principalmente de personagens simbólicas e da construção de quadros musicais magnificentes, de resto características peculiares à oratória ao contrário do que sucede na ópera.

À soprano Gillian Webster, notável Rainha do Sabá, coube protagonizar algumas das mais fascinantes passagens da composição de Händel, o tenor Thomas Walker e barítono Hugo Oliveira cantaram as suas árias com eloquência e Inês Simões exprimiu com correcção o canto da Rainha de Salomão.
 

Sugerir correcção
Comentar