À procura de um ouvido matemático que distinga as aves da Amazónia

Investigador brasileiro está na Finlândia a desenvolver modelo estatístico para medir a abundância das aves na floresta amazónica a partir da gravação de sons. Tecnologia pode vir a ser aplicada a outros animais com vocalizações, como anfíbios ou primatas.

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Arapaçu-de-bico-curvo (Campyloramphus procurvoides) Ulisses Camargo
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Caga-sebinho-de-penacho (Lophotriccus galeatus) Ulisses Camargo
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Papa-formiga-de-topete (Pithys albifrons) Ulisses Camargo
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Ulisses Camargo (que segura o gavião) com os seus colegas na Amazónia DR

Como é a vida das aves que se escondem nas copas das árvores da Amazónia? É essa a questão que Ulisses Camargo quer responder. Durante o mestrado, este investigador brasileiro reuniu 2000 horas de gravação de sons da floresta, mas apenas ouviu cerca de 300 horas. Agora, o doutoramento que está a fazer na Universidade de Helsínquia, na Finlândia, tem como objectivo desenvolver um programa informático com base estatística para identificar, pelo canto, quais as espécies de aves presentes, em que número e a sua distribuição espacial.

No final do doutoramento, em 2016, o cientista quer ter um instrumento capaz de identificar os padrões geográficos da distribuição das aves na Amazónia. Se tudo correr bem, poderá vir a utilizar este software para analisar 12.000 horas de sons que, entretanto, já foram gravadas. Assim, será possível perceber quais são as diferenças ecológicas na Amazónia entre a floresta primária, pristina, e a floresta secundária que, no passado, foi cortada para servir de pasto, mas onde as árvores voltaram a crescer.

“A floresta secundária é um tipo de ambiente que está a aumentar”, alerta Ulisses Camargo, falando ao PÚBLICO por telefone de Helsínquia. “Sabemos muito pouco sobre ela”, acrescenta. Desde Outubro de 2012 que o investigador de 29 anos está a fazer o doutoramento. Antes, o biólogo originário de Araraquara, município do estado de São Paulo, fez o mestrado no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazónia em Manaus, capital do estado do Amazonas, onde foi orientado pelo biólogo português Gonçalo Ferraz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O trabalho de campo começou em 2010. As gravações foram feitas a 80 quilómetros a norte de Manaus, numa região que é estudada no Projecto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais, que tenta há cerca de três décadas compreender o impacto do desmatamento. Na região aparecem aves como o papa-formiga-de-topete, o arapaçu-de-bico-curvo ou caga-sebinho-de-penacho.

Ali, foram colocados gravadores no tronco das árvores, entre os 1,5 e 1,8 metros de altura, em 150 pontos diferentes, que abrangeram uma área de algumas centenas de quilómetros quadrados com floresta primária e floresta secundária com 24 anos de idade. O alcance de cada gravador, que tinha um microfone associado, era de 100 metros, por isso captaram-se sons no cimo das copas das árvores, a 30 metros de altura.

O biólogo teve de ouvir ele próprio as gravações. A partir das vocalizações das aves, conseguiu determinar as espécies presentes e identificou 190 na floresta primária e 150 na floresta secundária. Destas 150, apenas três não existiam na floresta primária, que terão vindo de áreas mais abertas. Além de ter ficado muito material por analisar, as gravações continuaram a fazer-se todos os anos durante três meses, e só vão terminar agora em 2014.

“Como é que a gente pode explorar 100% destes dados? Como é que se pode ouvir tudo? A resposta é um programa de computador que pode ouvir por nós”, diz o biólogo, que foi desenvolver o programa no seu doutoramento, com orientação de Otso Ovaskainen, um investigador que usa a matemática para compreender fenómenos na biologia.

Ulisses Camargo quer que o seu modelo estatístico cumpra vários objectivos. Por um lado, que consiga identificar correctamente que espécie é que está a cantar. Por outro, que consiga determinar o número de aves que estão a ouvir-se de cada espécie. Um exemplo é quando se ouve um canto a poucos metros do gravador e depois um outro canto semelhante a muitas dezenas de metros, ciclicamente. Neste caso, é mais provável que sejam “duas aves a responder uma à outra do que uma ave a saltar de um lado para o outro que nem uma louca”.

O biólogo deseja ainda obter um registo geográfico da origem do som. No ano passado, testou na floresta um método de triangulação em que vários gravadores detectaram um mesmo som artificial. Como os gravadores estão a distâncias diferentes da origem do som, este fica registado a intensidades diferentes e a partir daqui é possível localizá-lo na floresta.

Nas gravações, apanham-se muitos outros sons além dos das aves. “Você pega macacos, insectos pega em 100% das gravações”, diz o cientista, acrescentando que o modelo estatístico que sair do seu trabalho poderá ser aplicado no estudo de outras espécies com vocalizações, como primatas ou sapos.

Apesar de não esperar descobrir novas espécies de aves, Ulisses Camargo pensa poder identificar novos cantos de cada espécie. Além disso, irá ter um testemunho áudio do dia-a-dia destas espécies sem interferência humana, algo impossível nos trabalhos de ecologia onde se capturam as aves. “As espécies estão por todo o lado, o que elas estão fazendo em toda a parte, ninguém sabe”, diz.

E há muitas perguntas por responder. Quais as aves que preferem clareiras, quais as que preferem zonas com mais água? Que espécies é que estão em competição, onde estão os predadores como as rapinas? Como é que tudo se passa nas florestas secundárias. “Há muitas aves que são pequenas e perdem muita água, a floresta secundária é mais quente do que a primária”, exemplifica Ulisses Camargo. Todas estas questões ajudam a compreender “os processos que regulam estas populações”.

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