A Reforma do Estado na Saúde: da ficção à realidade

O guião de Reforma do Estado é a emanação da história política portuguesa, prisioneira de conservadorismos.

A reforma do Estado é um tema endémico no historial político português. Desde o Século XIX, quando surgia a penúria do Estado, proporcional à sua anafadez – falava-se de reformas do Estado. Os funcionários públicos foram sempre o epicentro das causas e dos efeitos: as terapêuticas confinaram-se a cortes salariais de eficácia transitória e à publicitação de medidas ditas estruturantes, mas apenas politicamente correctas.

A dinâmica das mudanças foi sempre travada pelos ciclos eleitorais, o poder dos lóbis e das corporações e por uma cultura de estado-dependência, que tornou a maioria dos portugueses reféns e cúmplices de uma organização incapaz de evoluir. Uma relação clientelar atingiu os cidadãos, as organizações e até boa parte do tecido produtivo. Até instituições que nasceram da sociedade civil, como as Misericórdias e as Fundações, criaram uma relação orbital que as descaracteriza nos propósitos e nos meios.

Mercê desse histórico, quem tem governado o Estado nunca conseguiu ter uma visão estratégica, ou sequer periférica, do mundo em transformação. A Educação, a Saúde, a Justiça e a Segurança Social assemelham-se a barcos encalhados que, mesmo assim, consomem recursos crescentes. Como causa e consequência, os governos vão sendo constituídos por personalidades heterogéneas, algumas com valor técnico e político, mas que se transformam em alter egos que se desacreditam progressivamente.

O guião de Reforma do Estado é, assim, a emanação da história política portuguesa, prisioneira de conservadorismos, fantasmas sociais, omnipresença paternalista do Estado, liberalismo e socialismo, ambiguidades que espevitam a interrogação, onde abundam frases que significam uma coisa e o seu contrário.

Concretamente na saúde, referencia-se o acesso universal, a sustentabilidade financeira, mas tudo, aparentemente, em torno de um Estado que continuará detentor dos meios de produção. Paradoxalmente, defendem-se acordos estáveis e transparentes com os sectores privado e social, incluindo a cessação de exploração de unidades do actual parque hospitalar. Adiante, sublinha-se um novo modelo de governação do Ministério da Saúde, que prevê a separação entre financiamento e prestação, aparentemente sobre a mesma capa protectora. Na prática, muda-se para que tudo permaneça igual.

Infelizmente, numa conjuntura que aconselha uma melhor gestão do dinheiro dos portugueses, de forma a manter o Estado Social, cria-se um guião da arte de bem deixar tudo na mesma, aparentando servir os interesses dos conservadores e dos clientes formatados do sistema. A melhoria da saúde dos portugueses, objectivo para o qual deviam convergir as políticas do sector, é, assim, absolutamente secundarizada.

Separar o pagador do prestador, dar direito de escolha ao cidadão, promover a concorrência e evoluir para um sistema próximo dos seguros de saúde universais são inevitabilidades de curto/médio prazo para um Estado em evolução sociodemográfica, que cobra menos impostos e tem uma população envelhecida e mais doente.

O guião da reforma resolveu quase ignorar esta realidade e manter a miragem de um Estado omnipresente e panóptico na área da Saúde, embora sem dinheiro para sustentar as suas genéticas ineficiências e desperdícios. Que guionistas são estes, que redigem um produto de matriz ficcional quando os editores, que somos todos nós portugueses, encomendaram uma obra realista e que oriente a verdadeira reforma?

Assim, sem o pretender, se vai liquidando o Sistema de Saúde Português.

Presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP)
 

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