Os drones civis já chegaram mas a lei vem a caminho de carroça

Para além dos enormes aparelhos usados em operações militares, está em formação um exército de pequenos veículos aéreos não-tripulados. Há preocupações de segurança e de privacidade, mas a legislação não consegue acompanhar uma nova tecnologia que veio para ficar.

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Ensaio de um drone que a Deutsche Post está a pensar utilizar para despachar encomendas PATRIK STOLLARZ/AFP

Chamam-lhe veículos aéreos não-tripulados, aeronaves remotamente assistidas e muitas outras coisas que não são necessariamente a mesma coisa. O tempo e o ritmo dos media encarregaram-se de reduzir tudo a uma palavra, que faz disparar alarmes por causa dos mísseis que caem em países como o Afeganistão ou o Paquistão: drones. Dos militares, muito se tem falado: enchem páginas de jornais e alimentam acesas discussões na Internet por causa das vítimas civis no âmbito daquilo a que o antigo Presidente dos EUA George W. Bush chamou “guerra ao terrorismo”. Dos civis, para fins recreativos ou comerciais, fala-se menos, mas o seu uso cada vez mais frequente revelou uma enorme brecha na legislação, que as autoridades nacionais têm dificuldade em tapar.

Um dos episódios mais elucidativos da confusão que reina no mundo dos drones civis aconteceu em Outubro de 2012, nos Estados Unidos. Lá em baixo, milhares de pessoas cruzavam as movimentadas ruas de Manhattan no final de mais um dia de trabalho. Numa varanda de um dos muitos arranha-céus de Nova Iorque, um pequeno drone, equipado com uma câmara de filmar de alta resolução, levantava voo por entre o labirinto de cimento e vidro, pilotado por um curioso que acabaria por revelar mais entusiasmo do que habilidade para manter no ar um aparelho com quatro hélices e pouco mais de 1 kg de peso.

Depois de se aproximar perigosamente de vários edifícios, e de embater uma dezena de vezes contra alguns deles, o pequeno veículo aéreo não-tripulado inicia uma queda de várias dezenas de metros que só termina no chão, aos pés de um homem que estaria nesse momento mais preocupado com os obstáculos que tinha pela frente. O que restou do aparelho foi entregue à polícia, com as imagens intactas, e onde, para além de edifícios icónicos como o Chrysler Building ou o terminal Grande Central, ficou também registada a cara do piloto.

A resposta da polícia local traduziu o estado de confusão que caracteriza o arranque de uma nova indústria — a do uso civil e comercial de drones —, que se prevê vir a facturar vários milhares de milhões de dólares nos próximos anos. “Fiquei com a sensação de que eles sabiam que era algo fora do comum e que não sabiam o que fazer”, disse à estação norte-americana ABC o homem que escapou por pouco à queda do pequeno drone.

Para ele, a questão era simples: “Alguém tomou a decisão consciente de pôr no ar uma coisa sobre a qual não tem, obviamente, qualquer controlo, sobre a cidade mais densamente povoada, durante a hora de ponta. Não posso acreditar que não há nenhuma lei contra isto.”

Mas a verdade é que não há, como explicou ao PÚBLICO Brendan Schulman, conhecido nos EUA como “o advogado dos drones”, por ser o primeiro a levar a tribunal um caso sobre o uso comercial de veículos aéreos não-tripulados. Um dos seus clientes, Raphael Pirker, não teve a mesma sorte que o curioso nova-iorquino e foi multado em 10.000 dólares (7.300 euros) por ter captado imagens com um drone para uma empresa de comunicação, no âmbito de um trabalho encomendado pela Universidade da Virginia.

O drone de Pirker passou a alta velocidade pelo edifício da faculdade de medicina, por baixo de um túnel, muito perto de automóveis e pessoas, mas não caiu aos pés de ninguém, nem foi entregue à polícia por um cidadão preocupado com a sua segurança. Ainda assim, a Federal Aviation Administration (FAA, a autoridade nacional de aviação norte-americana) acusou-o de “pilotar uma aeronave de forma negligente ou imprudente” e de o fazer em troca de uma “compensação” financeira.

Nada de novo, defende o advogado Brendan Schulman. “Estes drones são usados para fins comerciais nos EUA há anos, por exemplo em Hollywood. No filme ‘O Aviador’ foram usados para filmar o avião de Howard Hughes a voar. Esse uso teve fins comerciais, mas a FAA não levantou nenhum problema. Por isso, se a ideia agora é ter uma política diferente, devem existir regras que sejam aplicadas a todas as pessoas”, argumenta.

Já no início deste ano, a FAA reforçou a sua intenção de proibir qualquer voo de drones com fins comerciais, ao ser questionada sobre um vídeo publicado no site do jornal norte-americano The Spokesman-Review, do estado de Washington, sobre um mergulho colectivo anual no lago Coeur d'Alene.

Depois ter divulgado o vídeo na rede social Twitter, o fotógrafo do jornal que recolheu as imagens, Jesse Tinsley, suscitou uma discussão sobre o uso de drones com fins comerciais, em particular no sector dos media. “Isto não é tecnicamente ilegal?”, perguntou Frank Bi, editor na estação pública Public Broadcasting Service. “Talvez, provavelmente. Eu consultaria o Matt Waite antes”, respondeu Mike Tigas, jornalista da organização noticiosa sem fins lucrativos ProPublica, referindo-se ao fundador do Drone Journalism Lab, da Universidade de Nebraska-Lincoln, que se dedica ao ensino do uso de drones por jornalistas. A resposta do professor de Jornalismo Matt Waite lançou ainda mais confusão: “Depende de quem o filmou. Se foi o The Spokesman-Review, a FAA não será muito tolerante.”

Poucos dias depois, a autoridade de aviação norte-americana veio desfazer as dúvidas e confirmar a intuição de Matt Waite: se os drones forem usados para fins recreativos, não há problemas; mas se houver dinheiro envolvido, incluindo o jornalismo, é proibido, disse o porta-voz da FAA, Les Dorr.

O advogado Brendan Schulman confirma que o vazio legal tem causado apreensão em vários sectores que pretendem usar drones nas suas actividades. “Não posso falar sobre casos em particular, mas fomos abordados por empresas de media que pretendem usar drones. Posso dizer que se sentem frustradas por não existir nenhuma forma clara de usar drones no âmbito do seu trabalho. Algumas optam por não usar, outras usam”, diz.

Para Schulman, nenhuma directiva ou orientação da FAA tem força de lei, razão pela qual decidiu defender Raphael Pirker contra a multa imposta pela agência. E nem as questões de privacidade, suscitadas pela incorporação de câmaras em drones, são vistas como um problema. “Não interessa que tipo de tecnologia é usada para violar a privacidade – pode ser uma câmara de circuito fechado, pode ser o facto de se entrar a pé numa propriedade privada, pode ser um drone. Se alguém estiver a fazer algo que invada a privacidade, a maioria dessas situações já está coberta pelas leis existentes sobre privacidade”, defende.

O “advogado dos drones” prefere salientar os potenciais benefícios do uso deste tipo de aparelhos em situações de emergência, em operações de salvamento, ou até em situações tão banais como a inspecção de cabos de electricidade, que depende hoje em dia do recurso a helicópteros tripulados.

O entusiasmo leva-o mesmo a estabelecer comparações audaciosas. “É como estar a viver o início da Internet. No início da década de 1990, muitas pessoas perguntavam o que seria possível fazer com aquilo. Nessa altura, muito poucos previram o aparecimento das redes sociais”. E lembra a influência do Twitter “em países onde as pessoas querem fazer ouvir a sua voz”: “Não sei se alguém previu esse benefício na década de 1990. Neste caso, tal como aconteceu em relação à Internet, os benefícios da tecnologia dos drones só serão reconhecidos no futuro.”

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