Paramount torna-se o primeiro grande estúdio a abandonar a película nos EUA

Migração para o digital está em curso há cerca de uma década. O Lobo de Wall Street foi o primeiro filme com lançamento exclusivamente digital no maior mercado cinematográfico do mundo.

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“Fim de uma era”, “fim do filme” — estes são alguns dos títulos que anunciam na Internet que a Paramount se tornou, discretamente, o primeiro grande estúdio de Hollywood a deixar de usar a película em favor do digital no mercado norte-americano. O filme da despedida da película foi Que Se Lixem as Notícias/Anchorman 2: The Legend Continues, e O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, ficará agora conhecido como o primeiro título de um grande estúdio a ter um lançamento exclusivamente digital nos EUA.

Com o filme realizado por um dos mais conhecidos activistas da preservação de filmes clássicos, especialmente do tempo do mudo — Martin Scorsese, que rodou O Lobo de Wall Street em 35mm mas também em digital —, a Paramount tornou-se assim 100% digital no maior mercado mundial de cinema. A notícia foi avançada na sexta-feira pelo Los Angeles Times, que explica que a estreia do segundo filme com Will Ferrell no papel de Ron Burgundy foi a última da Paramount a chegar às salas ainda em versão digital e em versão 35mm.

A informação foi dada aos exibidores quando da chegada de Anchorman 2 às salas (o filme estreia-se em Portugal a 13 de Março), e depois, já perto do Natal, quando o filme sobre Jordan Belfort e a sua vida de fausto e fraude no mercado bolsista se estreou, o filme de Scorsese tornou-se no que poderá ser o grande prenúncio de que as outras majors irão também abandonar de vez as cópias analógicas. O LA Times arrisca mesmo dizer que até ao final de 2014 o digital poderá reinar sem oposição — será o ocaso da película e, por conseguinte, de uma era, ao eliminar o suporte de sempre do cinema. Contudo, a Paramount vai continuar com a película nos mercados internacionais, nomeadamente em países com parca penetração de projecção digital e/ou com menor capacidade de investimento para apostar em sistemas digitais cuja instalação pode custar mais de 50 mil euros.  

Após esta decisão da Paramount, a Weinstein Co. anunciou que o seu próximo filme, a saga adolescente de vampiros Vampire Academy (estreia em Portugal a 6 de Março), será também lançado apenas em versão digital, tal como já tinha feito há um ano com Dark Skies. No território das majors, grandes estúdios como a Disney e a Fox tinham já dado sinais nos últimos anos de que o fim das suas aventuras em película estava próximo, lembra a Variety.

Se o grande filme-impulso é de Scorsese, pode dizer-se o pontapé de saída memorável foi dado por James Cameron em 2009, quando o seu Avatar se tornou não só um fenómeno de popularidade (é o filme mais visto da última década em Portugal e o mais lucrativo do mundo) como também um catalisador tecnológico. Não só pelo uso revolucionário do 3D e da tecnologia de produção com frequências superiores a 24 imagens por segundo (high frame rate), mas também por só poder ser exibido em cinemas com projectores digitais, o que acelerou a conversão não só nos EUA mas também mundo fora — acompanhada pela subida dos preços dos bilhetes. Estes projectores representam em si mesmos uma nova forma de expressão criativa para os realizadores, como defende Cameron, o seu embaixador mais visível.

“Durante 120 anos, a película e os 35mm têm sido o formato escolhido para as apresentações em sala”, diz ao LA Times o director dos arquivos de cinema e televisão da Universidade da Califórnia — Los Angeles, “e agora estamos a ver o fim disso”. A decisão da Paramount “é de um enorme significado” para o sector, remata Jan-Christopher Horak.

John Fithian, presidente da Associação Nacional de Proprietários de Cinemas norte-americana, viu agora confirmar-se a previsão que tinha feito publicamente em 2011. E congratula-se: “O facto de os grandes estúdios estarem agora a distribuir filmes apenas em sinal digital no mercado doméstico [dos EUA] assinala uma transição histórica para uma nova era” depois de “mais de 15 anos de trabalho” de migração. Se a Ásia está a adaptar-se rapidamente a esta mudança, há países europeus como a Holanda ou a Noruega em que já só existem ecrãs digitais. Até ao final de 2012, os números disponíveis mais recentes, entre os 551 ecrãs portugueses, 392 eram digitais.

Segundo executivos do sector da exibição citados pelo diário de Los Angeles, a Paramount pediu sigilo quando anunciou que iria tomar esta decisão. O jornal associa o secretismo aos riscos para a imagem do primeiro grande estúdio a abandonar a patine e a mística da película, que ainda é o suporte favorito de cineastas como Quentin Tarantino ou Christopher Nolan. Nolan, que está a filmar o seu próximo filme de ficção científica, Interstellar, em 35mm e Imax, dizia na Primavera passada à Variety que os 35mm oferecem “uma profundidade à imagem que os formatos digitais não têm” e mostrava-se preocupado com a chegada a um momento em que “os estúdios tentam forçar as salas a converterem-se, retirando a película”, porque considera que a projecção digital ainda não tem resolução suficiente para ultrapassar significativamente a imagem de um televisor de alta definição. Scorsese, que fez o seu Hugo em 3D, é menos purista que Nolan, mas mais sentimental. “Cresci com o celulóide", recorda à mesma revista, “havia um prazer sensual só de ver o celulóide… adorava fazer parte disso.”

O sigilo da Paramount é também associado ao potencial de perdas nas receitas, porque 8% dos 40 mil ecrãs existentes nos EUA não estão ainda adaptados ao digital — são sobretudo de salas independentes ou em pequenas cidades. Os irmãos Weinstein, por seu turno, explicam que não vão voltar-se exclusivamente para o digital — irão continuar a imprimir filme sempre que for comercialmente viável.

Segundo as contas de várias publicações, os custos de impressão e distribuição de um filme em 35mm oscilam entre os 1100 euros e os 1500 euros, enquanto a circulação em digital ronda os 73 ou 110 euros por cópia. Os preços de impressão e transporte da película subiram à medida que os fabricantes diminuíram a sua produção e fecharam estúdios de processamento e pós-produção (é o caso da Technicolor), devido ao decréscimo da procura. A transição para o digital ganhou força mundialmente na última década, com os projectores a dar lugar a sistemas digitais de projecção que evoluirão para a transmissão por satélite, como explica o LA Times, estreitando ainda mais os custos.

O filme deste progresso tem outras personagens em pano de fundo — os empregos perdidos na produção, impressão, distribuição e projecção da película, bem como todo um cenário feito de pilhas de latas de película. Embora haja ainda grandes fabricantes de filme no activo, os stocks guardados pelos estúdios são uma espécie de calendário em 3D desta migração que abandona o analógico rumo ao digital — em Abril passado, a Variety escrevia que as majors não queriam calendarizar oficialmente a sua passagem para o digital, dizendo que tal dependeria da disponibilidade dos seus stocks. Na altura, a Paramount já não tinha película, enquanto a Universal teria a maior reserva, que lhe duraria cerca de nove meses.
 
 
 

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