Não sei o que é pior

No meio dos jogos que os partidos fazem, dos fantasmas que os preconceitos agitam, das cruzadas por que os moralistas salivam, é bom não esquecer que é disto que trata a política que conta: da vida, concreta

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Reuters

Não me lembro da última vez em que, perante uma decisão do Parlamento, senti os olhos ficarem molhados. A razão é simples: como muitos, conheço a Fabíola, sei quem são os dois filhos que tem com a companheira, tinha lido a carta que escrevera aos deputados. A Fabíola explicava isto que qualquer coração percebe: estando com um cancro, sente o sobressalto que qualquer um de nós sentiria na mesma situação. Criou com a sua companheira, desde a gravidez, duas crianças. Se o pior acontecesse, as crianças não teriam o direito a que a outra pessoa com quem sempre viveram – que é sua mãe, portanto – fosse reconhecida como tal.

No meio dos jogos que os partidos fazem, dos fantasmas que os preconceitos agitam, das cruzadas por que os moralistas salivam, é bom não esquecer que é disto que trata a política que conta: da vida, concreta. Da vida da Fabíola e dos seus filhos, da vida de outras pessoas. De regras colectivas que nos respeitem, que não nos tornem dependentes dos preconceitos, da caridade ou da vontade arbitrária dos outros. Respeito – é tão simples quanto isto.

Relativamente à decisão do PSD — aprovada no Parlamento — de propor a realização de um referendo sobre a co-adoção, torna-se difícil distinguir o que é pior. Se é o desprezo pelas crianças concretas que vivem hoje com casais do mesmo sexo, e que vêem impedido o direito a que a sua família seja reconhecida. Se é a mesquinhez de usar um expediente parlamentar para abortar uma iniciativa legislativa positiva que estava em marcha e que o parlamento já tinha aprovado, que tornaria Portugal um pouco mais decente. Se é o facto de se instrumentalizar de forma oportunista este debate para criar uma manobra de diversão relativamente à violência quotidiana das medidas do Governo.

Não sei se neste caso o pior é a contradição gritante entre o discurso de sempre segundo o qual o reconhecimento de direitos em tempo de crise “não é prioridade” e o discurso de circunstância segundo o qual lançar o país num referendo para negar e restringir direitos é normal e aceitável. Se é, não esqueçamos, o miserável papel a que se prestou um grupo de “jotários” social-democratas ao serviço da direção do seu partido. Ou se é, por fim, a ignorância fazer-se argumento e a aversão à diferença fazer-se princípio político. É difícil, de facto, perceber o que é pior. Talvez o pior seja mesmo conseguir concentrar, numa proposta e numa decisão, tanta degradação, tanta pequenez e tanta maldade.

Nos últimos anos, contra as vozes conservadoras à Direita, contra a vontade do actual Presidente, demos passos nos direitos civis. Foi aliás dos poucos domínios em que andámos para a frente e não para trás. O referendo agora proposto quer pôr-nos a viajar para o passado e quer transformar o país numa discussão mesquinha contra alguns cidadãos.

Contrariando a homofobia que persiste, o desamor pelas famílias concretas e a vontade de lançar o país num referendo que o povo não quer, estou certo que haverá uma maioria de bom senso na sociedade portuguesa. É bom que ela se organize. Essa maioria falará com todas as vozes que a compõem — e será capaz, estou certo, de travar isto. Basta não ficarmos quietos.

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