Um Governo, uma maioria, um Presidente

1 – No começo do ano III da era da troika, Cavaco Silva entrelaçou-se com o Governo. Ao contrário de Passos Coelho, que num rigor germânico se mantém firme e hirto na frente do ajustamento, o Presidente voltou esta semana a mostrar que está longe de ser um processador automático de medidas. Não é grego nem celta. É, digamos assim, um português normal. Fino, impulsivo e elástico. Foi nesta sua condição que decidiu prescindir da fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional ao Orçamento de 2014. Ao fazê-lo, deu a Passos Coelho o mais apertado abraço simbólico dos últimos tempos da política portuguesa. Cavaco sabe que lá para Junho, quando acabar o programa de ajustamento, se vai escrever História. E sabe que nesse julgamento não estará apenas em causa o nome do primeiro-ministro: se o Governo falhar, também ele será arrastado pela lama do fracasso.

As palavras que Cavaco Silva nos deixou na sua mensagem de Ano Novo são um hino à conveniência política. O que nos foi dito sob a forma de análises, de recomendações ou de apelos é que estamos a um passo da primeira redenção. Não é, pois, tempo para riscos, nem para devaneios. Para que não houvesse dúvidas, principalmente lá para os lados da sede do PS, o Presidente tratou de esclarecer o que é a primeira redenção – um programa cautelar que, precisou, “é uma realidade diferente” de um segundo resgate. Claro que estaremos ainda longe da verdadeira e última redenção – a da soberania plena. Mas havemos de lá chegar com a nossa fibra, muito diálogo e ainda mais consenso. Pelo caminho havia, bem se sabe, o aborrecimento de um orçamento que toda a oposição considera inconstitucional. Para quem jurou defender a Constituição, a simples dúvida deveria servir para pedir a intervenção do tribunal. Só que Cavaco diz ter por Belém uns pareceres que bastam para superar esse irritante constrangimento – ainda que o orçamento acabe no TC por vontade da oposição.

Bem vistas as coisas, pode dizer-se que um e outro, primeiro-ministro e Presidente da República, se uniram pela necessidade de criar uma estratégia articulada com o fito de passar a mão pelo pêlo dos mercados. “Cavaco Silva não queria ser a fonte de incerteza política que poderia assustar os investidores da dívida pública nacional. Esta argumentação é discutível, mas politicamente compreensível”, escreve Bruno Proença, director executivo do Diário Económico. Agora que há sinais capazes de nos levarem a “encarar 2014 com mais optimismo”, o Presidente empenhou-se na mensagem do Ano Novo em fazer laços, em dar nós, em cerzir o tecido político degradado por dois anos e meio de desconfianças e conflitos.

Paulo Ferreira, subdirector do JN, acredita que o seu discurso de “seis páginas de conversa mole e desinteressante” mostram o que Cavaco Silva “politicamente é: um monumento ao tacticismo e ao equilibrismo, de modo a não chatear Deus, nem incomodar o diabo”. Talvez. Se é verdade que o apelo ao diálogo e à exigência de consensos para o futuro pode ser vista como um remoque a Passos por ter dispensado o PS do acordo sobre um eventual programa cautelar, tudo o resto da sua mensagem é um claro abraço de apoio ao Governo. “Daqui até Junho fazer de conta é mesmo a única estratégia que nos resta”, escreve a propósito João Pereira Coutinho, no Correio da Manhã.

Cavaco não cairá por amor no regaço do Governo porque não gosta do seu chefe, porque execra a maioria dos que o acompanham e porque não lhe perdoa as noites sem dormir que a irresponsabilidade da crise de Junho lhes provocou. Mas sabe, com realismo, que o país precisa de passar com calma o desafio do final da troika. Sabe que o seu mandato e o seu lugar na História estão dependentes desse sucesso. Sabe que não é tempo de ajustar contas. Com mais ou menos tacticismo ou equilibrismo, o Presidente fará tudo ao seu alcance para ajudar Passos a chegar lá. Nem que para isso tenha de mandar vir pareceres de Marte para evitar o recurso ao Constitucional.

2 – Neste contexto, alguém sabe por onde anda Paulo Portas? Bem se sabe que o silêncio é sempre um bom subterfúgio político, mas o silêncio do vice-primeiro-ministro começa a ser incomodativo. Depois da sua saída assim não tão irrevogável do Governo, depois de aparecer como o todo-poderoso cruzado do Governo contra os usurpadores da troika, depois de ter tentado negociar em vão prazos e metas do défice, depois de ter aparecido numa conferência de imprensa a apresentar um guião para a reforma do Estado que de imediato se evaporou, depois de comentar com a ministra das Finanças o sucesso de mais uma avaliação do programa de ajustamento, Paulo Portas eclipsou-se numas Boas Festas sem prazo à vista. Onde pára o vice-primeiro-ministro?

A pergunta faz sentido principalmente para todos os que vislumbraram a emergência de um novo dono do poder no Governo após a sua promoção após a crise política que estreou o Verão. Enganaram-se. Numa manobra que hoje pode ser vista como genial, Passos Coelho deu-lhe poder para o anular. Porque sabia que o seu discurso contra o rigor da austeridade e contra a troika não resistiria ao primeiro embate com a política real. Sabia também que o seu recuo após a demissão irrevogável é uma ferida que demora anos a sarar. Obrigado a engolir em seco, Portas deixou de ser o enfant terrible que ameaça o Governo a cada hora. Como é pouco dado a ser verbo-de-encher, remete-se ao silêncio. Ou a acertar relógios com os quais se faz a contagem decrescente até ao fim do “protectorado”. Pouco, muito pouco para um dos mais inteligentes, influentes, intuitivos e ardilosos políticos da História recente do país.

3 – Um relatório de auditoria do Tribunal de Contas à gestão do Programa Operacional do Norte (que distribui os fundos europeus) dava conta de uma estranha irregularidade. Para a ampliação e reabilitação de um teatro municipal em Felgueiras, obra que custou 3,2 milhões de euros, foi criado um caderno de encargos que impunha o nome de um pintor para dar vida aos tectos da velha sala de espectáculos e estabelecia o modelo das cadeiras a instalar. O tribunal considerou que esta exigência violava as normas da contratação pública e recomenda sanções. A Câmara de Felgueiras diz que não, que a indicação do pintor fazia parte do projecto do arquitecto, cujos direitos de autor não poderiam ser violados.

A discussão sobre o papel que o pintor José Emídio e o arquitecto Filipe Oliveira Dias tiveram na formulação de um caderno de encargos da responsabilidade da autarquia daria por certo origem a um extenso rol de dissertações sobre a prevalência da arte, ou da estética, sobre a política local. Nos interstícios do debate encontrar-se-iam provavelmente outro tipo de relações menos interessantes do ponto de vista intelectual. Esqueçam-se no entanto essas especulações e atenhamo-nos ao essencial: na promessa do Governo de que, no próximo ciclo de fundos estruturais, não haverá dinheiro para gastar a rodos em tectos pintados ou em cadeiras que são tão geniais e tão inspiradoras que só se podem experimentar em Felgueiras.
 

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