"Pode dizer-me o nome de alguém que se compare com ele?”

Na véspera da morte de Nelson Mandela o filme baseado na sua autobiografia foi apresentado em Londres. O actor Idris Elba é o líder histórico sul-africano. "Tu não és nada parecido com ele, mas és ele’”, disseram-lhe no Soweto.

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Idris Elba é Mandela no filme Longo Caminho para a Liberdade, que estreia em Portugal na quinta-feira. As filmagens acabaram há algum tempo e entretanto o actor britânico fez outros papéis. Mas por causa da estreia, teve de voltar a Mandela, contando em público como foi importante a sua passagem por Mandela e como foi ainda mais importante a passagem de Mandela por si.

Na quarta-feira, Elba resistia a perguntas que falassem da morte porque, disse, “ele” é único. “Pode dizer-me o nome de uma pessoa que se compare a ele? Agora ou no passado? Não há ninguém que tenha posto a cabeça no cepo como ele pelo bem comum”.

“Estou de luto, como o resto do mundo”, disse Elba no comunicado. Era a noite de gala de Longo Caminho para a Liberdade e Elba estava lá. As filhas de Nelson Mandela, Zindzi e Zenani, estavam lá. “Como está o seu pai?”, perguntou o príncipe William às filhas. “Está bem. Está fraco, como qualquer homem de 95 anos”. Via-se o filme quando Zindzi e Zenani foram avisadas que morrera. Saíram da sala, pediram que a notícia só fosse comunicada aos convidados no fim da sessão. “É uma notícia triste e chocante”, disse o príncipe à saída.

Volte-se à pergunta inicial, sobre a morte iminente de Mandela e o papel de um filme que é uma longa sequência de duas horas e meia em que apanhamos Nelson quando é um miúdo traquina chamado Rolihlahla Dalibhunga e deixamos Nelson (nome escolhido por um professor em homenagem ao almirante inglês) quando ele próprio já se sente uma memória.

Mandela é um nome universal, mas será que ainda sabemos o que fez e como fez? “Este filme é muito relevante por ser uma história que vai mais além do que um simples testemunho de um líder. Este filme tem uma lição, que é a de saber perdoar e de saber esperar”, diz Idris Elba, para quem há claramente duas partes no filme realizado por Justin Chadwick — ele gostou mais da segunda, mas aprendeu mais com a primeira. O filme baseia-se na autobiografia que Mandela começou a escrever na prisão — 27 anos, 18 deles na infame Robben Island.

“O Mandela mais velho foi construído para fazer o público colar-se à cadeira e dizer ‘ah, este é o Mandela que eu conheço’. Mas a primeira parte é de descobertas e nesse sentido é muito educativo”, diz o actor. É nos anos de juventude que se descobre que Mandela, um aristocrata na sua tribo, tem uma energia quase excessiva, sentido de humor, sentido de ritmo, muito charme para distribuir pelas mulheres e bom viver. Elba, que não tem qualquer semelhança física com Nelson Mandela — além da altura —, transforma-se gradualmente, levando o advogado jovem e idealista pelo tal caminho que o torna primeiro num estadista, depois num patriarca e finalmente num padrão ético universal.

“O filme é uma viagem em que vemos emergir o Mandela que todos conhecemos”, diz o actor, que repete várias vezes como foram duras as filmagens. “Foi muito duro traçar o mapa de todas as nuances”, diz. Conta que uma dificuldade grande foi aprender a falar. “O dialecto foi um grande projecto. Passei muito tempo a trabalhar a voz. Reparem que a forma como se fala hoje em Joanesburgo não é igual à que se falava nos anos 60”.

Edris Elba admite que percebeu, no início do projecto, que não estava tão familiarizado com a História da África do Sul como pensava. O actor de 41 anos nasceu em Hackney, uma zona pobre e violenta de Londres. “Havia racismo, mas isso fazia-me querer ir mais longe”, conta o actor que começou a fazer teatro na escola. Mandela era uma referência para o pai, Winston, um natural da Serra Leoa que se mudou para Londres depois de casar com a ganesa Eve. “O meu pai estava muito familiarizado com a luta de Mandela.Quando ele saiu da prisão [11 de Fevereiro de 1990]... foi um dia muito especial para o meu pai e percebi a importância do que estava a acontecer na África do Sul. O meu pai morreu recentemente mas ainda viu o filme e estava muito orgulhoso”, revela o actor.

Elba não sabia que Mandela fora casado antes de conhecer Winnie. “Muita gente não sabe”, diz. Não sabia outras coisas mais importantes, como muita gente não sabe. A luta pelos direitos civis na América é uma referência corrente nos filmes de época de Hollywood. Mas quantos filmes se dedicaram ao apartheid, o regime de segregação racial que durou entre 1948 e 1994 na África do Sul? Por isso, a luta dos negros sul-africanos, que como os americanos não podiam entrar nas lojas, usar as mesmas casas de banho, viver nos mesmos bairros, viajar nos mesmos comboios que os “europeus”, está mais escondida — e os massacres, quem se lembra deles? Nos anos de 1990, a África do Sul estava à beira de um banho de sangue. 

Quando o filme se parte em dois (Mandela jovem/Mandela velho), está-se na década de 1960 e Mandela cria o braço armado do Congresso Nacional Africano (ANC), aprende a fabricar bombas, declara a insurreição armada, entra na clandestinidade e é preso com uma arma na mão — tinha deixado crescer a barba para se esconder melhor e é a última fotografia que se conhece dele antes da libertação. Em Longo Caminho para Liberdade podemos ver Mandela a envelhecer, a ficar com os cabelos brancos e a pele enrugada. E a voltar ao idealismo de antes das bombas. É por isso que Idris Elba gosta tanto de ter sido Mandela mais velho, o homem que saiu da prisão e nem por um instante pensou em fazer aos brancos o que os brancos tinham feito aos negros.

“Uma das coisas que descobri é que a História da África do Sul é muito velha. Os afrikaners estão ali há muito tempo, os ingleses também. Na fusão de tudo, das muitas camadas, houve momentos de grande diversidade, que não perduraram. Mandela percebeu a História da África do Sul. Nem todos têm essa capacidade — a magia de Mandela foi ter sido um líder e, apesar do povo pedir sangue, ele soube levá-los para fora dessa pulsão”, diz Elba.

Quando lhe propuseram ser Mandela – primeiro achou que era uma piada do agente, desligou-lhe o telefone na cara; “Hoje não estou para tretas”, disse-lhe –, ficou com medo. A seguir, ficou cheio de respeito. O filme foi feito na África do Sul, a equipa base era sul-africana, os figurantes também e as cenas foram filmadas nos locais onde tiveram lugar. “Eles viam-me ali, 600 ou 700 figurantes, a tentar ser Mandela. Eles conhecem-no, não nos deixavam mentir. A certa altura [no Soweto] disseram-me: ‘Ei, tu não és nada parecido com ele, mas és ele’”.

“Quando estava a fazer o filme, a responsabilidade era fazer um bom filme. Agora, a responsabilidade é representá-lo. Eu não sou ele – como eles me diziam –  mas represento-o”, disse Idris Elba na quarta-feira, véspera de Nelson Mandela morrer. Na quinta-feira em que ficou atordoado, escreveu: “Perdemos um dos maiores seres humanos que já pisou este mundo. Sinto-me honrado por poder estar associado a ele”.

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