Dead Combo: ainda bem que estes dois se encontraram

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Miguel Manso

O duo de Tó Trips e Pedro Gonçalves apresenta os seus quatro álbuns na ZDB. Oportunidade única para perceber o que esta banda tem de único. Dez anos que parecem uma vida inteira

A entrevista já vai avançada quando Tó Trips fala do dia em que espalhou pelo chão da sala todas as edições dos Dead Combo. Os CDs, os vinis, os DVDs. Dispostos no chão os álbuns de estúdio Vol I, Vol II – Quando a Alma não é Pequena, Lusitânia Playboys e Lisboa Mulata, a colectânea dos primórdios Guitars for Nothing e o DVD gravado e filmado com a Royal Orquestra das Caveiras no São Luiz, em Lisboa. “Se visse isto e não conhecesse a banda, acho que ia gostar destes gajos”, pensou então. 

Só podemos juntar-nos a Tó Trips. Se, do nada, nos deparássemos com esta música e com a iconografia que a acompanha — ou seja, com Tó Trips, guitarrista de cartola, e com Pedro Gonçalves, contrabaixista, guitarrista e pianista de fato esguio e óculos escuros — restava-nos concluir que, sim, que gostaríamos destes gajos. 

Na próxima semana, entre os dias 12 e 15, os Dead Combo dão quatro concertos na Galeria Zé dos Bois — que foi a primeira casa do duo — dedicados em exclusivo a cada um dos seus álbuns de estúdio: Vol. I no dia 12, Vol. II – Quando a Alma não é Pequena dia 13, Lusitânia Playboys a 14 e Lisboa Mulata a 15 (início às 22h, bilhetes para cada uma das noites a 12€, com os sócios da ZDB a terem passes para a totalidade das actuações disponíveis a 40€).

Claro que o exercício de olhar para a obra dos Dead Combo como se a descobríssemos pela primeira vez está condenado à partida. Afinal, conhecemos muito bem estes dois. Ao longo de uma década, com a sua música de onde a voz está ausente mas que muito tem para dizer — são viajantes com o coração cheio de Lisboa, mas cuja curiosidade alcançou o deserto americano, os bares do Mindelo, clubes decadentes em Nova Iorque ou salões de tango em Buenos Aires — os Dead Combo tornaram-se presença inescapável no cenário musical. Tanto que, de certa forma, é como se por cá andassem desde sempre, figuras esquivas percorrendo vielas até ao palco mais próximo.

Mas, apesar de a sua música ter essa qualidade rara de chegar até nós como conhecida de longa data, os Dead Combo tiveram mesmo um início. Nasceram quando Tó encontrou Pedro no final de um concerto do norte-americano Howe Gelb. Depois chegou discretamente Vol. I (2004), o álbum de estreia. Dois anos depois, Vol. II – Quando a Alma não é Pequena mostrou que a viagem inicial não fora fruto do acaso. Em 2008, Lusitânia Playboys confirmou que a exiguidade do formato (dois tipos apenas) nada tinha de limitador e, em 2011, Lisboa Mulata surgiu para nos mostrar o quão longe tinha chegado esta música sem que, em essência, se tivesse transformado radicalmente. 

“A grande cena do primeiro disco é ter uma grande misturada”, considera Pedro Gonçalves. “Tem canções de guitarra acústica, tem outras com bateria ou com saxofone a fazer um grande granel. Isso foi uma grande vantagem. Como se disséssemos: ‘Isto é música , não interessa se é rock, pop ou o que seja’. É uma grande safa que temos. Podemos fazer o que quisermos”. 

Podem, no momento em que ultimam os pormenores para a gravação de um novo álbum, a sair no primeiro trimestre de 2014 (iremos ouvir alguma música dele ao longo das quatro noites), voltar atrás e reconstruir, passo a passo, o percurso que os trouxe até aqui. Fazem-no por uma conjugação de factores. Pedro Gonçalves: “Porque é um desafio para a malta; porque acho que é interessante para o público, que terá os seus discos preferidos e poderá ouvi-los; porque se comemoram os nossos dez anos”. 

E porque permitirá, de certa forma, um regresso às raízes. “[A ZDB] tem a ver com a nossa história, por termos tido lá uma sala [de ensaio] durante alguns anos, e por ser um sítio a que íamos muito”, diz Tó Trips. “Tem a ver com a noite, com a nossa vida no Bairro Alto. Mesmo que não fôssemos lá ver um concerto, íamos beber um copo, descobrir o que se passava. É um meio criativo, com os músicos, com as residências para montar exposições, com o pessoal das performances.”

Lembramos concertos dos Dead Combo na associação, com o duo no centro da sala, rodeado pelo público, e Pedro Gonçalves acrescenta: “Desde há dois anos que temos tocado sempre em teatros, para pessoal sentado, tudo muito certinho. Isto permite-nos voltar a um sítio em que está toda a gente de pé, em que as luzes são uns ‘projectorzecos’ que estão para lá. Música sem artifícios — não que tenhamos muitos, de qualquer maneira”. Não têm realmente. 

Os Dead Combo, como poucas outras bandas, são, exactamente, os dois músicos que os compõem — isto apesar do imaginário que construíram à sua volta, onde a cultura popular bairrista se cruza com o cinema negro, com o ambiente de crime e paixão dos cais das cidades portuárias, com os tiroteios dos westerns, com os excessos de muito rock’n’roll. Tó Trips e Pedro Gonçalves. “Um é azeite, outro é vinagre”, disparará com um sorriso o primeiro — sem especificar qual é qual.

Pedro Gonçalves está a gostar do processo de regresso aos discos antigos. Tó Trips não tanto: “Há lá músicas que já nem me lembro como se toca aquilo. Para mim o fixe é descobrir coisas novas”. Tó conta então que anda às voltas com Aos zig zags, de Vol. I. Contou com a participação de Nuno Rebelo, que foi também quem “montou” a versão final do tema. “O Pedro consegue decifrar essas merdas, eu ando às voltas e não consigo”. Segue-se então o seguinte diálogo, bem humorado: 

Pedro Gonçalves: “És um preguiçoso, é o que é.”

Tó Trips: “Não é uma questão de ser preguiçoso. É a necessidade de surpresa. Assim não tenho surpresa. Precisava de ganhar rotinas com as músicas”.

Pedro Gonçalves: “Eu gramo o regresso às canções”.

Tó Trips: “De certeza que ainda nem pegaste nelas. Por isso é que eu digo que este gajo é músico. Funciona assim: ‘Mostra lá qual é a música. Ah, ok. Já apanhei’”.

Pedro Gonçalves: “Foi para isso que estudei, pá. Estudasses [risos]”.

Pouco depois, Tó Trips fala-nos de quando subiu a palco num concerto e se deparou, no alinhamento criado por Pedro Gonçalves, com Quando a alma não é pequena. “Já não a tocávamos há não sei quanto tempo”, começa a explicar. Pedro Gonçalves atalha: “É bom como desafio”. Tó Trips suspira: “Um gajo fica todo angustiado”. 

Memórias

Há algo de umbilical na relação musical entre os dois. Sabem ler-se um ao outro e conhecem tão perfeitamente as redondezas da sua música que não será um pequeno desvio que os fará perderem-se. É por isso que é quase estranho pensar que houve um tempo em que eles não tocavam juntos, em que Tó Trips era “apenas” guitarrista dos Lulu Blind e Pedro Gonçalves “apenas” homem dos meandros do jazz. 

Tó Trips recorda a “surpresa” que foi perceber que crítica e público gostavam mesmo da música que começara a fazer. “Um gajo gasta energia durante uma vida para viver da música e, depois, quando faz uma coisa em que não se cansa, porque só queria fazer aquilo sem chatices e preocupações, as pessoas respondem. E finalmente faço música de que os meus pais gostam.” 

Entre toda a discografia, Tó Trips elege Lusitânia Playboys como o seu preferido. Por uma razão peculiar. “Ligo muito às capas e acho que aquela capa com a foto da Rita Carmo está muito bem conseguida. A foto, a capa, o disco. Para mim, é a nossa melhor capa”. Logo, o melhor disco? “Sim, logo, o melhor disco (risos)”. 

A viagem pela memória conduz-nos à Ópera de Rennes e aos técnicos locais assustados ao verem a trupe portuguesa invadir espaço tão formal aos gritos e às marteladas nas cornetas gigantes utilizadas como cenário de palco — “só descansaram quando viram que tudo montado até fazia sentido”. Pedro Gonçalves conta que se emociona sempre que ouve as contribuições do guitarrista Marc Ribot, um dos seus heróis musicais, em Lisboa Mulata: “Parece um bocado lamechas, mas fico sempre com uma lágrima no canto do olho”. E, acto contínuo, Tó Trips lembra-se de estar a observar Camané, acompanhado por Mário Laginha, pelo vidro da porta que separa o palco dos camarins da Sala Suggia, na Casa da Música. Os Dead Combo eram convidados especiais do fadista, com quem interpretariam duas canções. “Estava a vê-los pelo vidro, a curtir a música e a pensar: ‘O que é que aconteceu para estar aqui?’” A resposta de Pedro Gonçalves é rápida. “Meteste-te com um gajo que estudou”. A resposta à resposta também não demora: “E tu tiveste a sorte de encontrar um gajo que não estudou”. 

Ainda bem que estes dois se encontraram. Antes da chegada do novo álbum, teremos quatro noites para perceber, passo a passo, o que ganhámos todos com esse encontro.

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