O culto dos mortos que dançam

Para quem faz da voz de Lisa Gerrard e Brendan Perry um caso de fé e devoção, resta a dúvida: estará a fauna de um festival preparada para os receber?

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Ela estará do lado esquerdo do palco com um vestido sumptuoso, ele do direito, trajado de forma casual. Ela estará quase sempre impávida com o hipnótico yang ch'in por perto, ele vai dançar muitas vezes agarrado ao bouzouki. Salvo qualquer quebra de protocolo de última hora, nem uma palavra entre os dois será trocada. Será assim que hoje, quinta-feira, pouco depois das 22h, no Palco Super Bock, se fará hora de Dead Can Dance. Para quem faz da voz de Lisa Gerrard e Brendan Perry um caso de fé e devoção, resta a dúvida: estará a fauna de um festival preparada para os receber?

Trinta e dois anos depois de Lisa Gerrard e Brendan Perry formarem, em Melbourne, os Dead Can Dance, quase nada se mantém igual. Antes marido e mulher, a dupla separou-se matrimonialmente em 1989, mas segurou a união musical até 1998, ano em que ambos optaram por prosseguir carreiras a solo. Como legado, deixavam sete álbuns de estúdio e uma legião de devotos seguidores atraídos pela diversidade de estilos e influências. Seja darkwave, new age, música medieval, folk europeia, neoclássica, world music ou simplesmente uma fusão de tudo isso, a força dos Dead Can Dance está na voz de Lisa e de Brendan, bem ancorada na singularidade dos sons que apresentam.

A surpreendente ruptura da dupla anglo-australiana fez surgir um culto em torno da banda da mítica editora 4AD, e, “como forma de tributo aos fãs”, Lisa e Brendan voltaram a reunir-se em 2005 para uma pequena digressão mundial, onde Portugal ficou de fora. Porém, o que parecia ser uma boa notícia, rapidamente se tornou em decepção. Ressuscitados velhos conflitos pessoais, Lisa e Brendan acabaram a digressão de costas voltadas e o definitivo ponto final dos Dead Can Dance parecia inevitável.

No entanto, inesperadamente, no início de 2012, Brendan Perry fez o anúncio de uma nova digressão mundial e, meia dúzia de meses depois, surgiu “Anastasis”, o primeiro álbum de originais da banda em 16 anos. Para quem já sentira morrer qualquer esperança de algum dia os ver ao vivo, nascia a ansiedade pela revelação dos palcos que receberiam a dupla. Para os portugueses, a boa notícia chegou com o anúncio de um concerto na Casa da Música, no Porto. Os bilhetes voaram num par de horas, mas, para cerca de um milhar de privilegiados, a espera valeu a pena. Apesar da óbvia distância física entre os dois no palco, Lisa e Brendan não defraudaram as expectativas dos mais exigentes ao evidenciaram a comunhão artística musical de sempre.

O enorme sucesso da digressão que começou no Canadá, em Agosto, e que se estendeu pelos quatro cantos do Mundo, levou ao prolongamento da mesma até Julho deste ano. Com isso, Portugal ganhou mais duas datas e, na passada terça-feira, foi a vez do esgotado Coliseu dos Recreios, em Lisboa, os aclamar de pé. A set list foi ligeiramente encurtada — de 19 para 17 músicas —, as quase duas horas de concerto passaram num abrir e fechar de olhos, mas o resultado final foi, mais uma vez, memorável.

No regresso ao Porto, o filme será diferente. Perante uma plateia festivaleira, onde haverá, com toda a certeza, corpos estranhos que vão cair de paraquedas em frente ao palco enquanto aguardam por Nick Cave, o silêncio, peça-chave de momentos solenes como “Sanvean” ou “Dreams Made Flesh”, dificilmente prevalecerá. A nós, fiéis devotos do culto dos mortos que dançam, resta-nos abstrair-nos de tudo isso. É que hoje, pela terceira vez em pouco mais de meio ano, os Dead Can Dance actuam em Portugal. Para quem esperou mais de duas décadas para ver Lisa e Brendan, juntos, num palco, continua a saber a pouco.

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