Contos assim-assim: Comboio

O mesmo percurso até à estação. A mesma viagem de comboio. Um rosto familiar

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Joana Maltez

A chuva caía a direito, com uma força assinalável, quando o Serafim saiu de casa. A Segunda-feira seria “chuvosa”, de qualquer forma, uma vez que o Serafim era alérgico a inícios de semana. Dizia, no café, que não deveria haver primeiro nem último dia da semana.

No caminho até à estação, cumprimentava sempre doze pessoas, três das quais, de forma mais calorosa: o Zé do Talho, o Chico da Oficina e a dona Sara do café. Por esta ordem e com especial simpatia para a dona Sara, visto que o Serafim era de um tempo em que o charme passava, em larga escala, pela educação.

Quando chegou à estação, validou o bilhete de comboio. Apetecia-lhe dizer à máquina “Estou farto de ti, só me apareces de manhã e ao fim da tarde, ou seja, sempre que estou aborrecido”, mas não disse nada. Nem era por ser estúpido falar com uma máquina: era apenas por preguiça.

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João Nogueira Dias não escreve contos, escreve hipóteses. Curtas, por respeito aos leitores

Dentro do comboio, parecia haver uma neblina formada pelo sono das pessoas. Em última análise, poderia ser constituída apenas pelo sono de Serafim. Mas que havia neblina, isso havia.

Mesmo ao lado, estavam dois homens a falar de política. Um parecia ser de esquerda, outro de direita, embora o primeiro estivesse sentado no banco da direita e o segundo no da esquerda. A confusão que esta situação pode provocar é directamente proporcional à que existia naquela conversa. Muito do discurso passava por esta ideia: os meus são maus e até podem roubar, mas são melhores do que os teus. Ao fim de dois minutos, a conversa estava mais do que entendida, para todos, excepto para os próprios. Ficaram meia hora naquilo. Um deles terminou dizendo que “a vida é um comboio que não pára em Ermesinde”.

Quando a viagem começou, o Serafim perdeu-se na paisagem que o percurso mostrava. Os campos surgiam, em sequência, uns maiores do que outros, uns cultivados, outros abandonados. O Serafim pensava sempre no que faria, se tivesse um terreno. Depois, pensava na preguiça que iria ter, para tratar dele, e desistia da ideia.

Perto do seu lugar, estava uma mulher cujo rosto lhe pareceu estranhamente familiar. Aquelas feições, que a idade temperou, não da melhor forma, despertavam em Serafim memórias escondidas.

Lembrou-se da sua juventude. De um amor que teve, por uma rapariga chamada Filomena. A mulher que estava no comboio, de olhar vago e triste, de cabelo marcado por tons de branco, parecia-se com Filomena. “Não pode ser ela, nunca mais a encontrei, ela foi embora com os pais, não pode ser ela”, pensava Serafim.

Aquela memória transportou-o para a sua juventude, para tempos de rebeldia e aventura. Pensava em si e na sua vida, e sentiu que não estava muito distante do que planeara, para si, aos vinte anos.

Quando voltou a olhar para a mulher, ela olhava para ele, fixamente. “Parece que me conhece, mas não pode ser a Filomena.”

Saiu na estação do costume. “Parece mesmo ela, mas não é”.

Era Filomena e continuou a olhá-lo, enquanto ele saía do comboio. “O Serafim não mudou nada”, pensou.

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