Natal copta celebra-se entre a esperança e o medo

A 7 de Janeiro e não a 25 de Dezembro, porque o seu calendário é juliano e não gregoriano, a maior comunidade cristã do Médio Oriente “sai do gueto” para exigir os seus direitos.

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O ataque a uma igreja copta, no Natal de 2011, foi o pior para Mina. Os protestos que se seguiram juntaram cristãos e muçulmanos STR/AFP

Hany Wahba, engenheiro eléctrico de 31 anos, estará neste domingo na Catedral de São Marcos, no Cairo, das 19h até à missa da meia-noite, para celebrar o Natal dos cristãos ortodoxos coptas, que se assinala a 7 de Janeiro. “Não temos muitos motivos para festejar, com um Presidente da Irmandade Muçulmana e uma Constituição que nos aproxima de um Estado Islâmico”, diz o jovem egípcio, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone. “Vivemos agora pior do que durante o regime de Hosni Mubarak”.

Apesar de tudo, Hany e o seu amigo, “mais religioso”, Mina Thabet, estudante de Engenharia de 24 anos, estarão juntos a rezar “pela salvação do Egipto”. Diz-nos Mina, líder do Maspero Youth Union, também por telefone: “Temos agora um novo Papa [Tawadros II] e queremos saber como podemos vencer o medo, que não é só da maior comunidade cristã do Médio Oriente mas de todos os egípcios.” Hany entristece-se quando lembra que muitas pessoas nem sequer lhe desejam Feliz Natal. “Muitos salafistas emitiram fatwas [éditos] que condenam à morte quem nos saudar dessa forma, porque isso é considerado um reconhecimento de que Jesus é mais do que um profeta – é muito triste!”

O Natal dos coptas ortodoxos – 10 a 20% dos 80 milhões de egípcios – não é celebrado a 25 de Dezembro como o de outros cristãos (incluindo os coptas católicos e protestantes, cerca de 800.000), porque eles ainda usam o calendário juliano, adoptado por Júlio César em 46 a.C., e modificado por Augusto, outro imperador de Roma, em 8 d.C.. Este calendário tem 365 dias, ao qual se acrescenta um ano bissexto, a cada quatro anos. Desse modo, deixou de ficar sincronizado, em 13 dias, com o calendário moderno gregoriano, promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582. 

43 dias de jejum
O cristianismo egípcio remonta à fundação da Igreja de Alexandria, por São Marcos, em 43 d.C., o que faz dos coptas uma das mais antigas comunidades – liderada por uma hierarquia clerical distinta. Eles recusam-se a ser tratados como “minoria religiosa”, até porque a origem etimológica (e geográfica) de “copta” é “kpt”, o modo como os árabes pronunciavam a palavra grega Egipto (Aigyptos)

Os coptas rejeitaram o Concílio de Calcedónia, que impôs, em 451, o conceito de que “Cristo tem duas naturezas: uma terrena e outra divina”. Foram chamados de “monofisitas”, um termo que consideram pejorativo, classificando-se oficialmente como parte da “Igreja Ortodoxa Oriental”, na qual se integram também os arménios, os etíopes e os siríacos – mas não os ortodoxos gregos e russos, que cindiram do catolicismo posteriormente.

Todas as festividades coptas são precedidas de um período de jejum – o do Natal é de 43 dias, assinalando os 40 dias em que Moisés atravessou o deserto, com fome e sede, para receber os Dez Mandamentos. Mina Thabet, por exemplo, confessou que estava exausto porque desde 25 de Novembro não comia carne, peixe, ovos e lacticínios, de manhã até ao início da noite, ainda que precisasse de estudar intensamente para o último exame na universidade, a 1 de Janeiro.

Só neste domingo, 6 de Janeiro, fim do Advento, à meia-noite, quando começa o Natal, ele quebrará a abstinência, “para receber, sem mácula, o corpo e o sangue de Cristo”. Irá também saborear um pão especial que é distribuído pelos fiéis, durante a Eucaristia; chama-se Qurban, tem uma cruz ao meio e está rodeado por 12 estrelas, que representam os 12 apóstolos de Jesus.

Na casa de Mina e de Hany há “algumas decorações natalícias, como velas e árvores iluminadas”, mas os coptas “não têm a tradição ocidental de trocar presentes”, embora algumas crianças recebam uma pequena quantia de dinheiro (el’aidia), para comprarem doces, brinquedos ou gelados, explica Thabet. “Todos se vestem com roupas novas, sim, e depois da missa reunimo-nos com a família e os amigos, em casa, parques, cinemas – mas só depoisde comermos fatta, um prato à base de arroz e carne.”

Direitos e não caridade
Hany e Mina, ainda que ansiosos pelas celebrações, não escondem também as preocupações. “Os coptas, em particular, e a maioria dos egípcios, em geral, vivem apavorados”, frisa o primeiro. “Temos de mudar este país, por isso me inscrevi em várias organizações da sociedade civil e políticas. O presidente, Mohamed Morsi, está há seis meses no poder e ainda não nos deu nada. Talvez precisemos de outra sublevação. Não gosto que me despejem numa segunda classe. Ser copta é a minha religião, mas não me define como cidadão e, como cidadão, eu exijo os meus direitos.”

Inquirido sobre qual o seu melhor Natal, Mina Thabet hesita na resposta. “Só me lembro do pior: em 2011, quando uma igreja em Alexandria foi atacada. Morreram 24 pessoas, a maioria mulheres e crianças. Foi uma tragédia; um dos piores crimes contra os coptas. Este ano, espero que seja melhor; já é especial por termos um novo Papa, e depois porque acredito que Deus me ajudará nesta nossa luta por um país melhor.” 

Mais céptico, Hany Wahba lamenta: “As tensões confessionais sempre existiram, mas nunca a impunidade foi tão ostensiva. “Há cada vez mais ataques pessoais e contra igrejas (“pelo menos 16 foram incendiadas”), além de expropriação de bens e a proibição, que vem do tempo de Mubarak, de construir novos lugares de oração.” Hany não esquece, em particular, o chamado “massacre de Maspero”, cometido em 9 de Outubro de 2011. Nesse dia, forças de segurança mataram 27 coptas e feriram mais de 300, quando protestavam contra a destruição de um templo no Alto Egipto. “Exames forenses mostraram que pelo menos 14 pessoas foram esmagadas por carros de combate e as restantes foram mortas por munições reais, mas o tribunal arquivou o processo por ‘falta de provas’ para punir os culpados”, critica Hany. “Se eu tivesse a certeza de que arranjaria emprego no estrangeiro, já não viveria aqui; estou [cá] porque tenho de zelar pela minha mãe e pela minha irmã.”

O destino de Hany seria os Estados Unidos, onde o número de coptas que deixam o Egipto, fugindo da perseguição e da crise económica, aumentou cerca de 30%. Aos 350 mil que já viviam na América antes da revolução, juntaram-se mais 100 mil, segundo a emissora pública de rádio, a National Public Radio (NPR). Muitos chegam com vistos de turista e depois pedem asilo político, concentrando-se sobretudo em Nova Iorque, Nova Jérsia e Sul da Califórnia. Muitos dos que abandonam as suas casas já não são apenas os da classe média e das cidades, mas também os menos cultos e mais pobres das zonas rurais.

Os egos dos líderes
Hany Wahba pertence à classe média. Frequentou uma universidade católica privada onde, garante, nunca foi alvo de abusos físicos ou verbais, “mais frequentes nas escolas públicas”. Um revolucionário orgulhoso, foi dos primeiros coptas a desobedecer ao Papa Shenouda III e a ir para a Praça Tahrir, exigir a queda de Mubarak. Esteve “em todas as manifestações” contra o Conselho Supremo das Forças Armadas, quando este era liderado pelo temível marechal Tantawi. “Foi um período curto em que muçulmanos, cristãos, baha’ís e outros tinham como objectivo a unidade. Mas depois, face à irresponsabilidade do Ministério do Interior e de alguns pregadores salafistas, que encorajam os criminosos, a paz nacional tornou-se uma miragem.”

Co-fundador da Aliança Socialista Popular, “um partido não religioso em que os muçulmanos constituem a maioria dos membros”, Hany tem a certeza de que “os coptas estão a sair do gueto” em que Shenouda os colocou, “como forma de os proteger”. Os cristãos, frisa, “têm de deixar a religião para a Igreja, e a Igreja tem de se afastar da política. São os crentes que têm de se integrar nas diversas forças políticas como cidadãos”. Por isso, a sua Aliança é uma das componentes da Frente de Salvação Nacional, da qual fazem parte também os grupos de Mohamed ElBaradei, antigo director da agência da ONU para o nuclear, e Amr Moussa, ex-secretário-geral da Liga Árabe.

Hany reconhece que a oposição tem estado dividida, “devido aos muitos egos dos líderes”, mas acredita que após a aprovação da nova e polémica Constituição em referendo (cerca de 60% votaram a favor mas pouco mais de 30% foram às urnas), “há agora maior vontade de superar as divergências, e enfrentar em conjunto a ditadura absoluta da Irmandade Muçulmana.”

Alguns dos partidos da Frente já decidiram concorrer numa mesma lista nas próximas eleições legislativas, o que, para Hany, “tem vantagens – como uma melhor estrutura logística, que permita chegar às zonas mais conservadoras; e desvantagens – como correrem o risco de a votação ser apresentada como uma escolha entre os que estão a favor e contra Deus”.

Morsi e Mubarak, políticas iguais
“A situação económica é dramática e a política de Morsi não é diferente da de Mubarak, porque depende das ordens do Fundo Monetário Internacional, que está a exigir aumento de impostos e de preços dos alimentos, e também a desvalorização da moeda nacional”, salienta Hany. “Acho que nem o ditador deposto se atreveria a fazer isto, porque isto só aumenta a pobreza e a revolta!”

Tendo já provado as medidas amargas de Morsi, será que os egípcios voltarão a dar à confraria do Presidente e aos salafistas a maioria que detinham no Parlamento anterior, dissolvido pelos militares? “Talvez não, mas temo que a reacção popular, apesar do desapontamento, seja de apatia; e uma forte abstenção, a par de inevitáveis fraudes, será muito má para a oposição, se esta não aproveitar a oportunidade. É preciso ir aos redutos dos islamistas e informar as pessoas mais ignorantes de que não podem continuar a viver das esmolas dos Irmãos Muçulmanos; têm de exigir que o Estado lhes dê os seus direitos, e esses direitos são escolas ou clínicas, que não podem ser oferecidas como caridade.”

Menos devoto do que Mina Thabet, embora nunca tenha faltado a uma missa de Natal, Hany Wahba está nervoso: “As igrejas estão todas sob forte protecção policial, devido às ameaças que têm sido feitas. Talvez o Governo envie algum representante à catedral; e admito que ElBaradei e Moussa também estejam presentes, porque não têm nada a perder.” Quanto a si próprio, revela que o melhor Natal foi o que antecedeu o fim da licenciatura: “Tinha uma namorada naquele ano, e tudo parecia tão fácil.”

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