Os filmes de Alfred Hitchcock tinham muita Alma

Alma Reville foi casada com o mestre do suspense e teve sobre a obra deste uma profunda influência. No novo filme sobre Hitchcock, que acaba de estrear nos EUA, Helen Mirren é Alma, Anthony Hopkins é Alfred.

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Helen Mirren e Anthony Hoptkins são Alma e Alfred DR

Não era fácil ser mulher de alguém com um ego tão imenso como Alfred Hitchcock. Talvez por isso pouco se ouça falar de Alma Reville, apesar de esta ter sido a principal colaboradora do "mestre do suspense". Um novo filme – que, curiosamente, se chama apenas Hitchcock – vem fazer alguma justiça a Alma. O realizador, Sacha Gervasi, é praticamente um estreante, mas o filme, que acaba de chegar aos ecrãs nos EUA, tem com dois actores de enorme peso: Anthony Hopkins é Hitchcock, e Helen Mirren é Alma. Já se fala da possibilidade de um Óscar para algum deles – ou os dois.

O filme centra-se na relação entre o casal Hitchcock, e num momento em particular: as filmagens de Psico (1960), o filme que os responsáveis da Paramount não queriam que Hitchcock fizesse, e que ele insistiu em fazer. A história de uma rapariga que é assassinada num motel de beira de estrada provocou vários choques na púdica América do início dos anos 60 devido à forma como tratava a sexualidade (na cena inicial, a personagem de Marion Crane, interpretada por Janet Leigh, aparece na cama, em roupa interior, ao lado do amante), e a violência (a célebre cena do chuveiro, em que o psicopata Norman Bates, interpretado por Anthony Perkins, esfaqueia Marion). Escandalizou também a cena em que a protagonista deita um papel na sanita e puxa o autoclismo, algo até então nunca visto no cinema.

Algo fresco, algo diferente
Hitchcock mostra como o realizador fez frente à Paramount e avançou com o filme, financiando-o ele mesmo, o que o obrigou a hipotecar a casa. Mas, sobretudo, mostra a influência que Alma teve durante o processo. Foi ela quem, por exemplo, convenceu o marido a pôr música na cena do chuveiro – Hitchcock queria que a morte acontecesse em silêncio. "Ela punha o dedo em tantas coisas. Podia dizer ‘não, essa roupa não funciona; é preciso ter ombros mais largos. Essa cena não funciona; deves cortar aqui’. As pessoas perguntam ‘porque é que ela não recebeu crédito por isso?’. Bem, é difícil dar o devido crédito a esse tipo de coisas. O que é que se lhe pode chamar: ‘consultora’?, "esposa-consultora?’.", disse Helen Mirren ao The Washington Post.

Por ela se ter apagado desta forma, Mirren teve alguma dificuldade em construir os traços físicos da personagem. Existem apenas algumas fotografias, mas, explicou a actriz ao mesmo jornal, "não há nada filmado, apenas uma coisa muito breve no YouTube, quando Hitchcock recebeu o prémio do American Film Institute, e Alma está sentada ao lado dele". Mirren diz que viu essa filmagem repetidamente, mas Alma aparece apenas "um nanosegundo, é frustrante".

A principal base de trabalho foram livros, sobretudo um, Alma Hitchcock: The Woman Behind the Man, escrito por Patricia Hitchcock, a filha do casal – na capa, numa fotografia que diz muito, Alma acende um charuto ao marido.
Pequena e frágil (Mirren lamenta não ser fisicamente mais parecida), Alma não era – longe disso – uma fraca personalidade. Tinha opiniões firmes, e o marido ouvia-a. Mas ela sabia que o ego dele não deixaria nunca espaço para mais nada. E o projecto de Psico foi um momento particularmente marcante na vida de Hitchcock. O filme de Gervasi mostra a cena em que, à saída da estreia de Intriga Internacional, que foi um enorme sucesso, um jornalista lhe pergunta: "É o mais famoso realizador da história do cinema, mas já tem 60 anos, não deveria retirar-se agora que está na crista da onda?".

A pergunta terá irritado Hitchcock, que começou imediatamente a procurar "algo fresco, algo diferente", e chegou a um livro escrito por Robert Bloch, uma história inspirada nos crimes de Ed Gein, um assassino em série do Winsconsin, com características particularmente macabras. Hitchcock tinha encontrado Psico, que na adaptação ao cinema iria sofrer muitas alterações.

O filme provoca tensões entre Alma e Alfred, não só por ele ter decidido hipotecar a casa, como devido à fixação que tinha por loiras. Janet Leigh, a actriz de Psico, é, em Hitchcock, Scarlett Johansson, e um dos temas de debate prende-se com o facto de ele a filmar nua da cintura para cima na cena do chuveiro (apesar de não se ver nada, a cena levantou também problemas com a censura da época).

Se Helen Mirren tinha pouco material gráfico no qual basear a sua personagem, Anthony Hopkins tinha o problema oposto. Como representar Hitchcock? "A voz foi a primeira coisa, conseguir acertar com a voz de Hitchcock", contou à Fox News o actor, que se cruzou uma vez com o realizador, em 1979, em Hollywood. "Depois a maquilhagem". Hopkins não queria engordar, e optou por recorrer a um fato especial e a uma complexa maquilhagem.

Quanto à personalidade, comenta: "Consigo perceber a relação de Hitchcock com a mulher porque os homens, particularmente os que são muito criativos, são egoístas". E recorda que Hitchcock tinha fama de ser "muito frio com as pessoas" e de quase não falar com os actores. "Se dissesse alguma coisa que se assemelhasse a um elogio, era como se desse mil milhões de dólares".

Hitchcock, que se baseia (embora afastando-se significativamente) no livro Alfred Hitchcock and the Making of Psyco, de Stephen Rebello, não agradou ao The New York Times. O jornal lamenta a abordagem "pouco subtil" de Sacha Gervasi, que "enche a produção com imagens de pássaros e mostra as espreitadelas de Hitchcock a uma loura num fato cinzento", numa referência – pouco subtil – à personagem de Kim Novak em Vertigo. O grande problema, para o The New York Times, é o facto de o filme explorar a figura de Hitchcock, fazendo passar a ideia de que "ele só consegue trabalhar a partir de um território de loucura", e confundindo "génio com psicose".



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