J.R. foi vilão no tempo em que a vida era uma festa

Foi o herói de uma geração que lia nos autocolantes que Jesus queria que fôssemos ricos. J.R. Ewing escapou a um tiro em Dallas, Larry Hagman não sobreviveu ao cancro.

Em alguns aspectos Hagman aplicou a filosofia de J.R.: em casa uma bandeira dizia "A vida é uma festa"
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Em alguns aspectos Hagman aplicou a filosofia de J.R.: em casa uma bandeira dizia "A vida é uma festa" Reuters
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Em alguns aspectos Hagman aplicou a filosofia de J.R.: em casa uma bandeira dizia "A vida é uma festa" AFP

Durante o Verão de 1980, o mundo perguntava-se: "Quem matou J.R.?". A série Dallasera um fenómeno que ultrapassara as fronteiras dos EUA, e o vilão, o barão do petróleo J.R. Ewing, acabara de levar dois tiros de um desconhecido. O suspense durou oito meses - e, afinal, J.R. tinha sobrevivido. Em Novembro de 1980 reapareceu. Ficaria nos ecrãs mais onze anos.

Sexta-feira, Larry Hagman, o actor que se tornou famoso como J.R., não sobreviveu a um cancro na garganta. Morreu, aos 81 anos, num hospital de Dallas. Ao lado dele esteve a família, mas também dois dos actores com quem trabalhou durante mais de uma década, Linda Gray (Sue Ellen, mulher de J.R.) e Patrick Duffy (o irmão, Bobby). 

J.R. foi o papel da vida de Larry Hagman, o actor morreu colado a ele: este ano regressara à saga da família Ewing, numa sequela de Dallas, centrada na geração seguinte. É agora o tempo de John Ross Ewing III e Christopher Ewing, filhos de J.R. e de Bobby, mas a série não dispensou os pais, e Larry Hagman, Patrick Duffy e Linda Gray regressaram ao rancho de Southfork, e às eternas lutas em torno dos negócios da família. 

Os anos Reagan
A CBS colocou Dallas no ar pela primeira vez em 1978; a série só terminou em 1991 - e nenhuma representa melhor a América dos anos 80. "J.R. era um homem do seu tempo", escreveu David Jacobs, o argumentista, nos anos 90 no <i>The New York Times</i>. "O seu aparecimento nos ecrãs coincidiu com o início da Presidência de Reagan". J.R. era o vilão, e no início não era suposto que fosse a personagem principal. Bobby, o irmão bom, estava destinado a esse lugar. Jacobs tinha imaginado Bobby uma personagem mais complexa, "atraente mas imaturo". No entanto, os responsáveis da CBS quiseram torná-lo "mais convencionalmente heróico", e o argumentista começou a achá-lo "aborrecido". Mas graças a este esvaziamento do herói, o vilão ganhou protagonismo, e J.R. tornou-se o centro. Individualista, fascinado por dinheiro e pronto a passar por cima de tudo e de todos - características que o ligaram "a uma geração à qual em breve iriam dizer que se podia ser ganancioso, e que lia nos autocolantes dos carros que Jesus quer que as pessoas sejam ricas". O actor descrevia-o assim à revistaTime: J.R. era alguém "incapaz de recordar todos os que já tinha traído e todas as mulheres com quem tinha dormido".

Larry Hagman, esse, enriquecia. E, em alguns aspectos da sua vida, aplicava a filosofia de J.R. - a sua casa em Malibu, Califórnia, ostentou uma bandeira que dizia "A vida é uma festa" e Hagman contou que bebia quatro garrafas de champanhe por dia. 

Em 2011 confessou ao <i>The New York Times</i> que esteve alcoolizado a maior parte do tempo. O entrevistador perguntou-lhe se podia partir do princípio que estava bêbado em todas as cenas, e a resposta não deixa dúvidas: "Yeah." Nos anos 90 sobreviveu a uma cirrose e a um cancro no fígado, que o obrigou a fazer um transplante. 

Eram os anos Reagan, e, como explica David Jacobs, os ricos e poderosos exerciam enorme fascínio. "J.R. podia não ter um comportamento ético ou decente, mas em termos dramáticos funcionava mais como o protagonista do que como antagonista - o herói". E Dallas era tão dependente dele que, quando a 21 de Março de 1980, foi alvejado, o mundo parou para perguntar "Quem matou J.R.?".

Hagman percebeu o filão. Deixou Los Angeles, voou para Londres e ameaçou não voltar para a série a menos que lhe aumentassem o salário. "Nessa altura, o que é que era maior, o seu ego ou o seu ordenado?", perguntaram-lhe. "Eram mais ou menos a mesma coisa", respondeu. Como não ter um ego enorme quando numa cerimónia em que foi apresentado à rainha-mãe de Inglaterra, esta tentou arrancar-lhe: "Suponho que não me pode dizer quem matou J.R.?". "Eu respondi-lhe: "não, minha senhora, nem mesmo a si"", contou o actor.

Hagman voltou, com o aumento pretendido, e J.R. recomeçou a infernizar todos. O episódio em que se revelava quem tinha disparado (Kristin Shepard, cunhada e amante de J.R.) foi para o ar a 21 de Novembro de 1980 e teve, na altura, a maior audiência de um episódio na história da TV americana - e 350 milhões de espectadores em todo o mundo. 

O argumentista David Jacobs recorda, no texto do <i>The New York Times</i>, que nos anos 80 apareceu um "clone de Dallas", a série Dinastia, mas "enquanto Dallas era sobre a busca do dinheiro, Dinastia era sobre aquilo que o dinheiro pode comprar. Em Dallas o dinheiro era um instrumento, em Dinastia era um fim." Mas "tanto Dallas como Dinastiaapagaram-se com o fim da Presidência Reagan". 

Vinte anos depois - e seja o que for que isso signifique - J.R. estava de novo nos ecrãs, com Dallas 2012. "Larry tinha regressado à sua amada cidade de Dallas, e ao icónico papel que ele mais adorou", disse a família (era casado desde 1954 com a actriz Maj Axelsson, de quem teve dois filhos) no comunicado em que confirmou a morte do actor. 

Larry Hagman, que começou a sua carreira como actor na TV, no papel do astronauta Nelson na série <i>I Dream of Jeannie</i>, entre 1965 e 1970, era filho de uma actriz, Mary Martin, e de um advogado texano que, conta o El País, tinha entre os seus amigos alguns desses magnatas do petróleo muito parecidos com J.R. 

Quando o The New York Times lhe perguntou, em 2011, sobre a morte, respondeu que gostaria de ser cremado e de ter as cinzas espalhadas sobre um campo onde fosse plantado trigo e marijuana em quantidade suficiente para, mais tarde, se fazer um enorme bolo de marijuana para 200 ou 300 pessoas - assim estas "poderiam comer um pouco de Larry".
 

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