"Em Fevereiro, o país terá um choque quando olhar para a folha de ordenado"

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Leonardo Mathias defende que o Governo devia aproveitar a visita de Merkel para negociar juros iguais aos do Norte da Europa Foto: PÚBLICO

Leonardo Mathias, sócio e administrador da gestora de activos Dunas Capital, defende que o Governo devia aproveitar a visita de Merkel, não para pedir mais dinheiro ou tempo, mas para negociar juros iguais aos do Norte da Europa e mais investimento estruturante. Ou seja: várias Autoeuropas.

O ex-responsável da Schroders para a Península Ibérica, membro do Conselho Nacional do CDS/PP, considera que falta ao OE para 2013 “um choque vitamínico” que relance o crescimento económico e lembra que os mercados “são muito espertos” e estão mais preocupados com a queda continuada do PIB do que com a consolidação orçamental, ainda que esta seja importante.

Administrador da APAF (Associação de Analistas Financeiros), Leonardo Mathias,47 anos, entende que os bancos deixaram de ser parceiros dos clientes para serem “alguém com quem se for possível não se fala, nem se tem relações” (Versão integral da entrevista publicada na edição de segunda-feira, 12 de Novembro de 2012)

Em 2010, em entrevista ao PÚBLICO, disse: “se o crédito continuar estagnado, podemos entrar em recessão”. Portugal entrou em recessão. A realidade foi pior do que esperava?

Infelizmente sim. Conseguimos passar de uma recessão para uma depressão, geralmente definida ou como uma queda continuada do PIB durante dois anos ou, então, como uma queda acumulada de 6% do PIB. Para mal dos nossos pecados cumprimos os dois critérios. Quando isto acabar vamos ter uma queda de 5,7%, aproximada a uma depressão.


As orientações gerais do Orçamento do Estado (OE) para 2013 estão em linha com as suas expectativas?

O OE para o próximo ano tem uma estratégia clara de redução do défice público, da chamada consolidação orçamental, de certa forma imposta pela


troika

, mas também como forma de tentar cumprir o que foi declarado pelo Estado português em termos de metas a atingir nos parâmetros macroeconómicos. O que aparentemente falta é um choque vitamínico para relançar o crescimento económico e principalmente manter e aumentar das exportações. Por isso, há que ter cuidado com os 10% de IRC anunciados para os investimentos, e que aparentemente é a medida inovadora do Governo, pois o mercado é muito esperto.

O que quer dizer com “o mercado é muito esperto"?

Não conheço a fundo esta medida. Mas quando se chega a um ponto tão alto de impostos, o mercado torna-se inteligente. Será que alguém fecha uma empresa em Portugal, a monta em Espanha, que abre uma sucursal cá e alega que é um novo investimento? E quando falo em choque vitamínico este é o aspecto mais importante...


Acredita que o Governo vai conseguir cumprir as metas acordadas com a troika em termos de défice [5% em 2012, 4,5% em 2013, 2,5% em 2014]?Não conheço os OE de 2012 e 2013 a fundo, mas o que hoje sabemos é que houve surpresas. E as surpresas foram em 2012 nos gastos sociais por via do muito superior desemprego, da queda do rendimento disponível das famílias e das ajudas do rendimento social de inserção, das rescisões antecipadas e amigáveis, e da queda da receita de certos impostos que não tiveram o comportamento esperado. O lado positivo veio do programa de privatizações e da seriedade e frontalidade com que o Governo tem abordado a crise. Mas podem surgir de novo surpresas, como há sempre em todos os orçamentos, até no familiar. O que é óbvio é que são os pressupostos de base que estão a ser questionados.

Tem confiança nos parâmetros definidos no OE de 2013 que garantam uma boa execução, tendo em conta a derrapagem registada este ano?

Como português tenho uma confiança cega na nossa capacidade para ultrapassarmos os desafios. E como empresário tenho consciência de que uma forte convicção, resiliência e trabalho rigoroso e disciplinado trazem resultados, isto, sem esquecer a inteligência e a habilidade de negociação. É o que espero de Portugal.


Os agentes económicos que fazem as suas previsões e decisões de investimento com base em números, em expectativas...

... E logo não investem em Portugal.


...acreditam num ministro, Vítor Gaspar, que se enganou nas contas [o défice de 2012 deveria ficar em 4,5%]?

Não ligam tanto ao ministro. Os que menos conhecem a realidade ligam mais, infelizmente, ao que a comunicação social diz. E eu teria muita pena, se não conseguíssemos chegar ao défice de 5% fixado para este ano com as receitas extraordinárias provenientes da concessão da ANA [proposta que ainda não foi autorizada por Bruxelas]. O Governo não sairá bem.


Têm surgido muitas vozes a criticar o OE alegando que a economia real vai sucumbir a tanta austeridade. Qual é a sua opinião?

Já quase tudo foi dito, mas entre os aspectos mais significantes vai ser sem dúvida a quebra no consumo derivado do impacto do aumento de impostos. Na economia real o que me assusta é que o rendimento disponível das famílias tem caído sistematicamente nos últimos anos, mas a generalidade dos preços tem-se mantido. As propinas escolares, o preço do pão, dos automóveis, da água, da electricidade se não se manteve, até aumentou, tal como o custo do dinheiro (via


spreads

). Para o cidadão comum esta equação complicada está a ser muito difícil de resolver. E o seu impacto é em todo lado e diário. Digo-lhe que estou muito preocupado com o dia 2 de Fevereiro.

Porquê?

Tivemos um milhão de pessoas na rua quando anunciaram que os custos sociais iam aumentar em 7%. Agora temos tido manifestações, não da sociedade civil, mas mais organizadas e sectoriais. E ninguém ainda fez contas ao que é que vão ser os salários líquidos no final de Janeiro. As pessoas só vão realizar o que vão perder no dia a seguir à população activa receber o salário líquido. E aí vai haver um choque.


Do seu ponto de vista, e tendo em conta que é um “homem dos mercados”, como acha que os mercados vão reagir às medidas do OE para 2013?

Os mercados têm uma visão diferente. No final do dia, querem, sem dúvida, que as contas públicas estejam em equilíbrio e que as balanças sejam positivas. Mas o aspecto verdadeiramente essencial para um investidor com risco Portugal (obrigações, acções) é o potencial de crescimento económico. Esta é que é a questão.


E acreditam numa queda do PIB nacional de apenas 1% em 2013?

É esse o ponto: como é que vão investir num país que nos próximos três anos não crescerá...


... e daí a sua preocupação pela ausência de medidas destinadas a relançar o crescimento económico e a necessidade de um choque vitamínico?

Como já referi, o potencial de crescimento, a visibilidade desse crescimento económico são o factor crítico de confiança e de investimento num país. Temos agora uma visita da Angela Merkel e, para mim, seria um desperdício que a senhora viesse cá para tirar umas fotografias de ocasião e comer um peixe grelhado à beira mar num dia de sol. Espero que este Governo esteja empenhado em a garantir investimento directo alemão em Portugal.


Não deve pedir mais tempo e dinheiro?

A crise não vai desaparecer com mais tempo ou dinheiro emprestado, mas sim com investimento estruturante na nossa economia. É a velha fábula do pescador: “Não me dêem mais peixes emprestados, mas sim uma cana para eu poder pescar.” Ou seja, quero mais três Autoeuropas, quero níveis de financiamento iguais ou parecidos com os dos Norte da Europa e quero tudo isto já, não daqui a cinco anos.


O Governo devia, portanto, pedir aos parceiros internacionais redução de juros?

Temos primeiro que perceber qual o tipo de crises que enfrentamos. Se é uma crise de liquidez ou se é uma crise de solvência (capacidade de responder perante os nossos compromissos financeiros). Ou se estamos perante ambas. Se a crise é de liquidez, temos que garantir que o mecanismo de compra de títulos por parte do BCE seja credível e que funcione. Se a crise é de solvência, então há que batalhar forte e duro para que as condições do empréstimo [da


troika

] sejam razoáveis. Um

spread

ou um diferencial de cerca de 200 pontos, entre o custo médio do empréstimo cedido pela

troika

e a dívida alemã é alto de mais. Mas este é um aspecto sobretudo político, pois Itália e a Espanha não se podem estar a financiar a 4% e 5% e ceder a Portugal a 3,6% (custo actual português). Segundo as nossas contas, de forma aproximada, uma redução de 3,6% para 1,6% corresponderia a 0,8% do défice. As condições inicialmente negociadas, pois tratou-se de uma negociação e não de uma imposição, terão de ser flexibilizadas, dado que alguns dos choques na economia não podiam ter sido antecipados. Há metas e agendas que terão, assim, de ser adaptadas à realidade e não vice-versa. Mas também acho que a ligação entre os prejuízos do sector bancário e a dívida pública terá de ser cortada.

Não se vê ninguém por parte do Governo a negociar com os parceiros internacionais. Paulo Portas, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, devia estar mais activo no terreno a negociar, nomeadamente, com o FMI a revisão dos termos do memorando de Abril de 2011?

Não só com o FMI, mas também com a UE e o BCE. E mantendo negociações bilaterais com os nossos parceiros europeus, bem como com os nossos aliados por esse mundo fora. A nossa posição deve ser claramente explicada e exposta. Tenho a certeza que o ministro Paulo Portas está a actuar, bem como outros membros do Governo. Não são assuntos que possam ser seguidos na esfera pública. Envolvem argúcia e discrição até ao fecho da negociação. Mas ele tem andado por esse mundo fora como o grande vendedor de Portugal com a finalidade de continuar a diversificar as nossas exportações o que vai no sentido certo.


Qual é o maior bloqueio à concessão de financiamento à economia real, às empresas exportadoras?

A “desalavancagem” e, principalmente, o custo do dinheiro. Também não podemos esquecer que o inventário dos bancos tem preços que hoje em dia são muito baixos. Lembra-se dos créditos à habitação com


spreads

inferiores a 1%? Agora veja com se estão a financiar os bancos. Julgo também haver um problema estrutural que é a falta de

ratios

de capital das empresas portuguesas, mas não podemos esquecer que o modelo de negócio do Portugal S.A, (desde a liberalização dos mercados nos anos 80) assentava na parceria entre bancos e empresas. O difícil é que de um dia para o outro o parceiro banco, não só não quer, ou não pode ser accionista, como não pode, ou não quer, fornecer crédito. Warren Buffet tem dito que o crédito é como o oxigénio, quando se respira livremente nem se nota, quando não se consegue respirar não se pensa noutra coisa…. Tenho pensado no que tem dito Fernando Ulrich [CEO do BPI] e ele tem razão.

O que é que Ulrich tem dito?

Que não há procura de crédito. Independentemente de ser caro investir, como há uma total falta de confiança, e como há uma visibilidade tão grande da quebra da procura interna, quem é que vai investir em Portugal? Nem os portugueses. Por outro lado, todos temos informações de amigos, ouvimos depoimentos, de que o A foi tentar negociar com o banco e ficaram-lhe com a casa. De que o B foi tentar negociar com o banco e teve de tirar os filhos da escola. Os bancos “executam” o cliente quando entra em incumprimento por cinco euros sem olharem ao seu historial. E deixaram, e isto é preocupante, de ser o parceiro para ser o papão. Como se fossem alguém com quem se for possível não se fala, nem se tem relações. É o cunhado chato que se coloca no Natal do outro lado da mesa.


O que pensa da criação de um banco de fomento, sustentado, ou não na CGD, para promover o crescimento?

Um banco não, mas sim um veículo da esfera pública, via CGD, com um mandato claro. Será que se poderia envolver por baixo de uma só instituição a Cosec, o Aicep, os fundos QREN?


A CGD deve ser privatizada?

Há uma questão prévia à discussão sobre a privatização ou não da CGD: qual deve ser o seu mandato? Que funções deve ter na economia nacional? Qual o apoio às empresas e portugueses espalhados por esse mundo fora? Pessoalmente, não sei qual foi o mandato dado à actual administração e, portanto, parece-me muito mais relevante discutir o papel da CGD e dependendo de um escrutínio optar, ou não, por a manter na esfera pública.


Se tivesse responsabilidades o que definia nos mandados dos administradores da CGD?

Repito, não está em causa a minha escolha individual, mas sim uma opção colectiva e nacional pelo enorme impacto que essa definição pode ter nos clientes [economia real] e colaboradores do grupo CGD. Não acha que já há tantos decretos-lei que vão para consulta pública? Este tema, dada a sua relevância, não deveria ser tratado de um modo mais formal do que está a ser, debatido nos jornais e televisões? Os colaboradores da CGD, a APB, os reguladores, BdP e CMVM, não deveriam ser consultados? Não se deviam estudar as referências e as boas práticas a nível internacional?


Defendeu que a CGD devia funcionar como o BCE, devia ser um emprestador de último recurso?

Aí está um exemplo do que a CGD poderia ser.


O BES antecipou em um ano a ida ao mercado de dívida a médio e longo prazo, sem garantia do Estado, pagando juros de 5,8%, com a procura a exceder em 5 vezes a oferta. Surpreendeu-o? Foi um êxito?

Sim, pode falar-se em coragem, astúcia e em êxito por parte do BES. Também não tenho dúvidas que merece melhores taxas, mas é muito importante para o sistema bancário e para Portugal que um dos seus principais operadores demonstre a bondade dos seus argumentos além fronteiras e consiga cativar investidores internacionais num momento tão fluido como o actual. A isto chama-se “


benchmarks

” ou referências de mercado e que podem e devem ser seguidas por outros. O caso do BES é ainda mais relevante pois é muito activo no mercado internacional e tem a confiança dos investidores internacionais. Sei disso, trabalhei mais de dez anos num dos maiores investidores europeus.

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