A Turquia quer reaver património e já teve uma conversa com a Gulbenkian

Foto
O fólio do Corão do século XV que está no Museu Gulbenkian DR

Campanha turca pela devolução de peças espalhadas pelo mundo chegou aos jornais e está a agitar alguns dos grandes museus. O da Gulbenkian recebeu uma visita, mas não houve qualquer pedido de restituição.

A Itália, a Grécia e o Egipto são peritos nestas campanhas, ao contrário da Turquia, que, tendo em curso um programa de pedidos de devolução de antiguidades pelo menos desde o início dos anos 1990, não costuma servir-se de jornais e televisões para pressionar os seus interlocutores. Mas, nos últimos meses, Ancara parece ter mudado de estratégia.

As autoridades turcas ligadas à conservação do património estão a pedir a museus em todo o mundo que façam um exame aos seus acervos e determinem em que condições determinadas peças ali chegaram. Ao mesmo tempo, o ministro da Cultura e o director-geral do Património têm falado à imprensa, defendendo os objectivos da campanha, dando conta de vitórias pontuais e apontando a mira a algumas colecções internacionais. Garante a revista britânica The Economist que museus como o Metropolitan (Nova Iorque), o Pergamon (Berlim) e o Louvre (Paris) receberam já a visita de representantes de Ancara, alguns com exigências precisas. O diário norte-americano The New York Times (NYT) não hesita mesmo em escrever na edição do passado domingo que os directores destas instituições se sentem "sitiados" pelas exigências do Governo turco.

Foi nesta lista de museus de prestígio que poderiam vir a ser objecto de pedidos de devolução que a Economist de 19 de Maio incluiu o Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O director do museu, João Castel-Branco Pereira, confirmou terça-feira ao PÚBLICO que recebeu em Junho dois representantes turcos na sede da fundação, mas que não houve qualquer pedido formal de restituição de peças. "Sabiam exactamente o que procuravam, certamente porque consultaram os nossos catálogos", diz. "Traziam, inclusive, o número de inventário dos fólios que gostariam de ver. Disseram apenas que queriam estudar os documentos e consultar os seus registos."

Este lote de documentos é composto por cinco fólios (folhas) soltos dos séculos XV a XVII, uns de um volume do Corão, outros de um manuscrito não-identificado, diz Jorge Rodrigues, responsável pelo acervo de arte islâmica da colecção Gulbenkian. "São todos belíssimos, com iluminuras, mas como são meramente decorativos, sem texto, não é possível determinar a que tipo de obra pertenceriam os que não são do livro sagrado", acrescenta o historiador de arte. O mais importante destes documentos terá sido a página (ou uma das páginas) de abertura de um Corão da segunda metade do século XV, com uma shamsa, "uma representação figurada do sol que teria o sentido simbólico de "iluminar" os fiéis", explica Rodrigues, acrescentando que a inscrição que lhe está associada a dedica ao seu encomendador, provavelmente o sultão otomano Mehmed II, "O Conquistador", que reinou entre 1451 e 1481.

Sem entrar em detalhes, uma fonte oficial da Embaixada da Turquia em Lisboa confirmou o pedido de informações à Gulbenkian, mas garantiu ao PÚBLICO que este nada tem a ver com a campanha a que se referem os artigos da Economist e do New York Times. "A visita ao Museu Gulbenkian foi pedida por Ancara e é de rotina", acrescentou a mesma fonte. "É um procedimento normal no quadro das relações culturais entre países. Todos os países podem fazer este tipo de visitas de rotina."

O director do Museu Gulbenkian autorizou o acesso à informação do inventário e, segundo Jorge Rodrigues, foram já enviadas aos representantes turcos imagens digitalizadas dos documentos em causa. "Acho muito bem que um país queira conhecer o património que tem espalhado pelo mundo", diz Castel-Branco Pereira, "mas passar daí a uma exigência será outra coisa, implica uma reflexão".

Discussão infindável

As autoridades turcas defendem que há inúmeras peças nos museus ocidentais que saíram do país na sequência de escavações ilícitas, que foram compradas em mercados por coleccionadores pouco escrupulosos ou que, simplesmente, resultaram de saques a túmulos e ruínas, muitas delas na Anatólia. Em sua defesa, os directores de museu argumentam que muitas das peças lhes foram doadas há décadas, que muitas vezes não é possível determinar a sua origem e que, de que tenham consciência, não guardam nos seus acervos obras roubadas. Dizem ainda que, caso não estivessem no Ocidente, muitas destas obras teriam sido destruídas por guerras. Quem tem razão? A resposta a esta pergunta parece levar a uma discussão infindável.

Dos cinco documentos da colecção Gulbenkian que a Turquia quer conhecer melhor, dois não têm indicação do local de aquisição. Os restantes, nos quais se inclui a shamsa com a dedicatória a Mehmed, apresentam pormenores precisos: foram comprados em 1928 a Nathan Wildenstein, um dos principais marchands da época, com galerias em Londres, Paris e Nova Iorque, por 1000 libras. Calouste Gulbenkian (1869-1955) recorria muitas vezes a Wildenstein e comprou-lhe, por exemplo, pinturas de Fragonard ou Watteau, diz Castel-Branco Pereira, lembrando que o coleccionador era obsessivo quando se tratava de inventariar o que adquiria.

"Gulbenkian comprava em antiquários e leilões. É por isso que a grande maioria das suas peças está documentada. Ninguém o via nas escavações a fazer compras nem nos mercados. A única excepção na compra directa aos artistas foi René Lalique", diz o director. E se a Turquia chegar à conclusão de que Wildenstein obteve os manuscritos iluminados de forma ilegal e vier a exigir a sua restituição? "Se houver um pedido de devolução, terá de ser analisado pelo departamento jurídico da fundação. Não acredito que Gulbenkian comprasse uma peça sabendo que fora roubada."

Jorge Rodrigues não gosta sequer de pensar na eventual saída dos fólios, mas garante que, apesar de importantes (o do Corão dedicado ao sultão foi, aliás, capa do catálogo da primeira exposição do Museu Gulbenkian, em 1963) não são os mais significativos da colecção islâmica: "Os persas, figurativos e cheios de poemas, são artisticamente mais relevantes."

Chantagem cultural?

Segundo o NYT deste domingo, a campanha já começou a dar frutos, embora haja quem fale em "chantagem cultural" para definir o que Ancara está a fazer junto de directores e conservadores. Em meados de Setembro, por exemplo, foram devolvidas 24 jóias saídas das escavações de Tróia e que estavam no museu da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, desde 1966.

Desde 2008 foram restituídos quase 3300 artefactos, noticiava a 12 de Setembro o diário Hurriyet Daily News. Falando na altura em que o "tesouro" troiano foi devolvido, o ministro da Cultura turco, Ertugrul Günay, fez saber que países como a Polónia e a Sérvia podem em breve seguir o exemplo de Ancara. "Vamos continuar a resgatar os nossos artefactos", disse Günay, garantindo que o seu gabinete está especialmente atento aos leilões internacionais e que tudo fará junto da Interpol para suspender vendas sempre que se suspeite de que determinada peça saiu ilegalmente da Turquia.

Hermann Parzinger, presidente da fundação que gere o Pergamon, disse ao diário americano que "os turcos deviam ser mais cautelosos nas suas exigências morais quando os seus museus estão cheios de peças roubadas". Apesar das reservas de Parzinger, que garante que este comportamento do Governo de Erdogan põe em causa mais de 100 anos de colaboração germano-turca na salvaguarda do património, o museu de Berlim devolveu à Turquia no ano passado um sarcófago com três mil anos que, alegou Ancara, fora enviado para a Alemanha para restauro em 1917 e não tinha ainda sido devolvido.

Se é verdade que a campanha de Ancara, semelhante à dos gregos à volta dos mármores do Pártenon (hoje no Museu Britânico) e dos egípcios pelo busto de Nefertiti (Museu Egípcio de Berlim), levanta muitas questões éticas e parece ignorar que os próprios museus turcos guardam património de outros países, também é verdade que passear por muitas ruínas arqueológicas espalhadas pela Turquia pode levar a uma reflexão dura sobre o papel do Ocidente nestes territórios.

Quem percorre hoje a acrópole da antiga Pérgamo associa a todo o esplendor que se adivinha nas ruínas dos palácios, do teatro helénico que provoca vertigens e da grande biblioteca que chegou a guardar 200 mil obras uma imensa sensação de perda. No lugar onde deveria estar o principal altar da cidade, muito provavelmente dedicado a Zeus, há apenas uma reprodução gráfica, carregada de informação em várias línguas. O original, um monumento magnífico do século II a.C. com elaborados frisos que representam a luta entre gigantes e deuses, foi removido em 1879 com a autorização do sultão e está hoje no museu de Berlim a que a velha cidade dá nome. Em Éfeso, as esculturas que hoje se vêem na fachada da belíssima biblioteca são réplicas - as originais estão em Viena.

O altar de Pérgamo não está na lista de exigências de Ancara, mas mostra o que a Turquia perdeu. "Os artefactos, tal como as pessoas, os animais e as plantas, têm alma e memória histórica", disse o ministro da Cultura turco ao NYT. Murat Suslu, o director do património, acrescenta: "Nós só queremos o que é nosso por direito." O debate promete continuar.

Sugerir correcção
Comentar