A que soa um ano na vida de David Fonseca

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Miguel Manso

Hoje é dia de "Seasons: Falling", o segundo disco de David Fonseca em 2012, irmão-gémeo de "Seasons: Rising", e que culmina o desafio de se entregar à composição de novas canções durante 12 meses. Projecto para músico e performer

"Tou podre", desabafa ela. Mallu Magalhães aterrou em Lisboa há pouco mais de um dia, seguiu directa para quatro horas de ensaios e, depois de um curto descanso, subiu ao palco do Rock in Rio para partilhar algumas canções com David Fonseca. Passaram 24 horas sobre o final da actuação, a 3 Junho, e os dois músicos reencontram-se depois do jantar em Paço d'Arcos, no estúdio da Valentim de Carvalho. Na véspera, o palco tinha dado vida às canções de Seasons: Rising; aqui dentro, são os temas de Seasons: Falling que se vão levantando a partir das maquetas caseiras trazidas por David, com a ajuda do produtor Nelson Carvalho. Duas partes que consumam o desafio autoproposto de um ano a compor, dois álbuns lançados a reboque das estações - o primeiro chegado com a Primavera, o segundo, hoje, com o Outono. Mallu, cujo consumo de café se mede aos jarros e não às chávenas, acabou convidada para partilhar um tema novo do músico português, Monday, Tuesday, Wednesday, Thursday, composto como dueto que a ocasião fez por atribuir à autora do belíssimo Pitanga. O encontro no Rock in Rio deu-lhes a desculpa perfeita. Mallu recebeu a canção por mail ainda no Brasil, gostou do que ouviu, cantarolou um pouco por cima e deixou o resto para a espontaneidade do momento. Não houve managers envolvidos nem outros entraves formais. David convidou, Mallu aceitou. Só não ensaiou.

Daí que à terceira ou quarta passagem pelo tema se torne evidente que o tom original obriga a brasileira a cantar em esforço. E consultado o piano e o ouvido infalível de Nelson Carvalho, não há outra hipótese: tem de ser tudo mudado. Ainda assim, um truque de estúdio permite desenrascar e alterar provisoriamente o tom ao instrumental; noutro dia, David terá de regravar quase todos os instrumentos. Enquanto Nelson dá ordem ao computador para fazer as alterações necessárias, Mallu vai para o piano, inventar uma cançoneta que mais parece vinda de Fiona Apple, uma pequena preciosidade do momento, que tenta ainda convencer David a gravar. "Não sou assim, não consigo", responde-lhe na altura. "A ideia de jam é algo que me aterroriza por completo", dir-nos-á mais tarde. "A música para mim é muito mais pessoal do que isso, não acho que me vá sair num momento de jam. Acordes giros toda a gente faz todos os dias e qualquer músico com algum jeito consegue fazer canções assim. Mas, para mim não, significam nada". Isto enquanto autor, clarifica David, porque na pele de ouvinte compulsivo de música não tem nada contra quem - como Mallu ou os Pavement, arrisca - consegue compor assim. "Se eu tenho seis horas de maquetas ela deve ter 23", ri-se. Mas depois chama a idade à mesa. Mallu, pequeninos 19 anos acabados de fazer, tem praticamente a idade com que David fez a sua primeira canção, hoje vista por ele como algo infantil, mas com a consciência de que será seguramente uma das músicas por que será recordado - Borrow, dos Silence 4. "Hoje", completa, "tudo é mais cúbico, ando à procura das coisas".

Não é por acaso que David Fonseca vai buscar as "seis horas". Foi o total acumulado de ideias que tinha engavetadas no computador, registadas de Março a Março. Praticamente desde que, a 26 de Janeiro de 2011, teve a ideia de "fazer um ano de canções e ver como funcionava". Em parte, confessa, estimulado pelo artista taiwanês Tehching Hsieh, cuja obsessão pela passagem do tempo e por viver as suas performances o levou a desenvolver projectos como fotografar-se de hora a hora, depois de esmurrar um relógio, durante um ano ou ter-se fechado igualmente durante igual período dentro de uma caixa com espaço apenas para uma cama e lavatório, proibindo-se de falar, ler, escrever, ouvir rádio e ver televisão. Bastante menos radical na sua proposta, David assume que em Seasons "há uma certa política de performance".

Demasiado tarde para estender o projecto durante um ano civil, David consultou o calendário em busca de uma outra medida temporal que fosse clara: e aquilo que encontrou disponível foi a marcha das estações. "Mas não tem verdadeiramente a ver com estações, mas sim com a ideia de loop, de circularidade", diz. Oficialmente, Seasons começou a 21 de Março e a ideia era tão simples quanto isto: impor-se uma disciplina de composição durante um ano. Ainda teve algumas dúvidas, mas passada a primeira metade e clarificados os primeiros resultados empolgou-se. "Os primeiros seis meses foram claramente diferentes dos segundos. É como quando se sobe uma montanha, sem experiência: começa-se cheio de força e a andar muito depressa, e a meio uma pessoa cansa-se. Aquele ânimo todo, que em música se traduz muito em tudo muito alto, tudo muito rápido, desvanece-se um bocadinho e uma pessoa acaba por se sentar mais e ter a tentação de fazer outras coisas."

Ou seja, aquilo que em Rising era mais impetuoso e arrebatado, em Falling é mais desapressado e ressacado. Mas não apenas pelo entusiasmo inicial ter dado lugar a uma forma menos urgente de lidar com o desafio. Os primeiros meses de composição, por coincidirem com a época alta de concertos, vivida fora de casa, atiravam-lhe pedaços de canções durante testes de som e outros momentos de estrada, mais propensos a uma sobreestimulação dos sentidos, olhos e ouvidos a sorverem mundo para o devolverem depois nas canções. A segunda metade corresponde a um período de reclusão quase total.

O fantasma de Mavers

A cultura pop de David Fonseca tem em Lee Mavers o seu mais ameaçador fantasma. Em 1990, com os The La's, Mavers criou uma das obras maiores da pop britânica, após três anos de gestação com vários parteiros diferentes. Os produtores entravam e saíam, os singles (There She Goes Again, por exemplo, para os mais distraídos) eram lançados e o álbum continuava a ser aprimorado. Até que finalmente saiu. E Mavers nunca mais conseguiu repetir o feito. Entre vários períodos intermitentes do grupo, consumidos pela frustração perfeccionista de quem queria não menos do que o mais glorioso conjunto de canções de todos os tempos, os La's foram retomando a actividade. Mavers fez 50 anos em Agosto e continua a prometer um segundo disco para breve.

Fonseca não quer esta relação patológica com a sua arte. Por isso, precisa que lhe imponham prazos. E desde que um professor de guionismo, na Escola Superior de Cinema, lhe disse que precisava de marcar uma hora todos os dias para se sentar a escrever começou um longo caminho até se convencer da necessidade de propiciar condições para que as ideias apareçam. "Então e se chegar à hora marcada e não tiver nada para escrever durante quatro horas?", perguntou na altura. "Com os meus 21 anos, aquilo parecia-me estapafúrdio. Hoje já percebo a lógica disso, porque de facto é preciso algum tempo para assentar e resistir ao ímpeto moderno de estar sempre a fazer qualquer coisa". Por isso, é só à noite que Fonseca, livre dos afazeres familiares, com o telefone sem solicitações constantes e as horas de sono a encurtarem que estende o tapete para a chegada das ideias. "Quando fica tudo desligado", diz, "é que há um universo que posso explorar durante umas quatro, cinco, seis horas. Até porque durante as duas primeiras horas não se passa nada - estou a olhar para a internet, a ver o facebook, a ver como funciona aquele instrumento, a pôr as cordas na guitarra... Mas essas duas horas em que não falo com ninguém é uma aproximação lenta às coisas. É o tempo preciso para chegar ao sítio".

Quando voltamos a visitar David Fonseca em Paço d'Arcos, primeiro numa sessão de guitarras e depois na gravação do quarteto de cordas, encontramo-lo em missões bastante distintas. Apesar de grande parte do trabalho criativo vir já com uma forma razoavelmente final das sessões nocturnas da sua casa em Leiria - dos seis minutos trazidos por David espremem-se os três/ quatro mais condizentes com a regra pop -, quando está sozinho com Nelson Carvalho é tempo para se permitir experimentar, improvisar solos de guitarra, tentar vários sons e abordagens. I'll never hang my head down é sujeita a uma sobreposição de camadas de guitarras de todos os géneros, do mais Springsteen a um "som de mosquito" que identificamos com Jack White. "Só vou sossegar quando tiver uma guitarra com o meu nome", graceja após um solo que parece cuspir fogo. O produtor responde-lhe que tal guitarra terá de ser baptizada com "mr. Funesca" - a usual deturpação do seu apelido em hotéis estrangeiros. Suspendendo o humor, o músico confessa ter nas suas limitações técnicas - "toco tão mal tantos instrumentos" - o empurrão para "seguir por outros sítios inesperados". Os takes vão-se sucedendo e depois de Fonseca deixar as pistas num alvoroço, caberá a Nelson Carvalho um minucioso trabalho de peneirar tudo aquilo até alcançar ao equilíbrio certo.

Em cima da mesa de mistura jaz o melhor exemplo dessas rotas imprevistas: uma mbira. Instrumento moçambicano (equivalente ao quissange) enviado por promotores de espectáculos em Moçambique como pequena acção de charme para o levar a tocar por terras africanas, o músico deixou-o em casa a descansar ao lado do computador até ao dia em que ali bateu com os olhos. "Queria um ambiente meio misterioso que tivesse a ver com algumas coisas meio exóticas. Olhei para aquilo e quis experimentar. E cada instrumento que se acrescenta altera tudo. Não há nada determinado, está sempre tudo em mutação até chegar a data final. Vamos gravando, até que largamos e seja o que deus quiser. Gosto disso. Conheço muitos músicos que vivem muito mal com essa ideia da data. Eu já aprendi a viver com isso".

O que não quer dizer que David Fonseca viva em paz total com os discos quando os dá por determinados. Com Seasons: Rising, por exemplo, já o álbum estava masterizado quando um tema começou a martelar-lhe na cabeça. Ia no carro, eram duas horas da manhã e teve de ligar para o produtor: "Oh Nelson, tu vais-me matar, mas estou entalado com uma coisa e não consigo ultrapassar isso". Tiveram de voltar atrás. "Mas parte de mim gosta de o fazer, porque diz-me quão a sério levo tudo isto".

Essa inquietude, acredita, é aquilo que faz de si músico. "Há a ideia de que o sucesso produz um certo bem-estar em tudo, que é o maior erro possível. Se há uma coisa que o sucesso dá é o contrário: a noção de que o mais fácil é cair no fosso e nunca mais sair de lá. O problema é continuar a fazer isto de forma sistematicamente interessante". E há muito que aprendeu a não se rodear por quem só lhe dê palmadinhas nas costas e a evitar ser engolido pelos néons. "Parece que a música por si só já não chega e que os músicos têm de ser pôr em bicos de pés, com gansos na cabeça e plumas". Aquilo de que não abdica, no entanto, é de promover a sua música "de uma forma mainstream". Mesmo que "fizesse música como o Scott Walker no último disco". Hoje, quilómetro 110 para lá da fronteira com Espanha, toca em Cáceres. Enquanto artista alternativo.

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