Paul Simon: a arte e a política

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Para comemorar os 25 anos de Graceland, um intrigante documentário traça a criação e a controvérsia que rodeou o álbum que Paul Simon criou com músicos africanos


Paul Simon
Graceland + Under African Skies
CD+DVD Legacy, distribuição Sony Music

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Quando, em 1986, o sucesso colossal de Graceland levantou a Paul Simon acusações de ter furado o boicote cultural ocidental à África do Sul, provavelmente ninguém esperava que o insustentável regime do apartheid acabasse menos de uma década depois. O tempo encarregou-se de provar o contrário, mas o que Under African Skies mostra é que ninguém, nem mesmo Simon, esteve inocente no processo que viu Graceland tornar-se de simples encontro criativo entre artistas americanos e sul-africanos em batata quente política - e isso era exactamente a última coisa que o cantor-compositor americano queria que o disco fosse.

Under African Skies não é o proverbial extra de DVD feito para encher espaço na mais recente manigância da indústria para voltar a vender um disco que já toda a gente tem em casa (para cima de 14 milhões de cópias vendidas, pelas contas da Wikipedia). A recriação em modo "história oral" da criação e recepção de Graceland, incluída como extra na edição restaurada comemorativa do 25º aniversário do álbum, podia ter sido feita para aproveitar a ocasião e os concertos de reunião com os músicos que tocaram no disco e na sua digressão a partir de 1986. Mas já nós esquecemos que há 25 anos, quando Simon se deixou seduzir pela música sul-africana que ouviu numa cassete passada por um amigo e decidiu colaborar com os músicos (todos negros, todos oprimidos) que nela ouviu, ainda existia o apartheid, e as coisas não eram tão simples como apenas fazer um telefonema e ir para estúdio com gente que, no seu país, era considerada cidadãos de segunda classe.

O realizador é Joe Berlinger, documentarista veterano com um pé na denúncia activista (Crude, sobre as lutas legais entre companhias petrolíferas e comunidades sul-americanas, ou a trilogia Paradise Lost, sobre a justiça na América moderna) e outro na música popular (foi ele que dirigiu o aclamado confessional dos Metallica, Some Kind of Monster). O que Berlinger faz é admitir que é impossível separar Graceland do momento político em que surgiu, da voz que Simon deu aos músicos negros sul-africanos que, de oprimidos no seu próprio país, se tornavam respeitados e divulgados internacionalmente. Simon queria evitar qualquer conotação política no disco - tratava-se, como ele próprio diz, de celebrar a universalidade da música e o traço de união comum a universos aparentemente tão distantes uns dos outros, não de subordiná-la a questões políticas e sociais que nada tinham a ver.

Esse idealismo artístico, tanto mais surpreendente quanto vindo de alguém cuja experiência nos anos 1960 lhe dera a exacta noção do poder que uma canção pode ter, contudo, continua a soar perigosamente ingénuo ou irresponsável. Se Simon tivesse pedido a aprovação do Conselho Nacional Africano, como lhe foi sugerido, a controvérsia que rodeou Graceland poderia nunca ter existido. Ao invocar o apartidarismo artístico, no que pode bem ser lido como uma birra adolescente de rebelião contra as instituições, Simon praticamente garantiu o estatuto de pára-raios do álbum, caindo no meio de uma situação política violenta volátil e lançando o debate - assaz válido, mesmo que, no seu caso, igualmente vão - sobre a sinceridade das estrelas pop ao alimentarem-se das músicas do mundo para relançarem as suas carreiras.

Mesmo tendo relançado de facto a carreira de Simon, que nunca havia vendido tantos discos a solo (nem nunca os voltaria a vender), 25 anos depois Graceland é tudo menos isso: continua a ser um disco de estarrecer, onde o artesanato oblíquo da composição urbana e abstracta de Simon se coloca no centro global onde África e América se encontram, onde a country e o rock e os blues desaguavam na imensa "mama Africa", onde "the story of how we begin to remember" mostrava que "the roots of rhythm remain". Under African Skies, pelo seu lado, resiste heroicamente ao endeusamento hagiográfico de Graceland; não é esse o seu objectivo, prefere escavar nas entrelinhas para debater as relações sempre equívocas entre a arte e a política, explicar a paciência meticulosa com que Simon burilou as suas canções, numa peculiar história oral que é muito menos um Rashomon musical do que uma investigação que vai mais longe e mais fundo do que é habitual neste tipo de projectos. O desconforto de Paul Simon é evidente sempre que se fala das dolorosas controvérsias de Graceland - e isso, num objecto oficialmente autorizado como este, é por si só algo de notável

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