Incurável pessimista

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ASHLEY GILBERTSON/ VII NETWORK/ CORBIS

Iconoclasta e, segundo ele próprio, um pessimista incurável. Entre aviões, o escritor australiano Peter Carey respondeu ao Ípsilon a propósito de A Química das Lágrimas.

Aos 69 anos, Peter Carey, republicano convicto - recusou receber uma condecoração da Rainha Isabel II de Inglaterra -, insubmisso e iconoclasta, arvora o seu famoso sentido de humor, aliado a uma irreverência e um dinamismo contagiantes. Nasceu em Bacchus Marsh, na Austrália, detestou ser enfiado num colégio interno, copiava na escola, passou apenas um ano na Universidade, a estudar Ciências e, aos 19 anos, descobriu Faulkner, Joyce, Kerouac, entre outros que o empurraram (literalmente) para a escrita. Durante os 13 anos que se seguiram escreveu à noite e aos fins-de-semana, enquanto trabalhava em publicidade (cada vez menos) e se dedicava à ficção (cada vez mais). Admite que reescreve os clássicos e que sente inveja do sucesso de autores seus contemporâneos, sentimento incompreensível dada a extensão da lista dos prémios que já arrecadou. Óscar e Lucinda (1988), o seu terceiro romance, abriu-lhe as portas do universo literário. Seguiram-se êxitos como Jack Maggs (1997), A Verdadeira História do Bando de Ned Kelly (2001), Roubo: Uma História de Amor (2006), O Seu Lado Clandestino (2008) e Parrot e Olivier na América (2009). Em 1990 deixou a Austrália e radicou-se em Nova Iorque. Preocupado com as questões sociais e ambientais, desdobra-se em conferências e palestras e orienta oficinas de Escrita Criativa no Hunter College. Entre aviões, a caminho de Toronto, respondeu ao Ípsilon, a propósito de A Química das Lágrimas.

Disse que, em determinada altura da sua vida, se cansou de escrever contos e que se tornou "viciado nos prazeres e perigos do romance." Qual a sensação desse "mergulho"?

Foi uma mentira. A minha agente estava a tentar vender uma colecção de contos à Faber and Faber e perguntou-me: "Posso dizer-lhes que está a trabalhar num romance?" Eu respondi: "Claro!". Depois, a mentira tornou-se verdade e eu escrevi Bliss.

Uma mistura de humor com o bizarro está sempre presente na sua escrita. Será devido à influência de escritores como Henry Fielding ou Jonathan Swift?

É algo pessoal que nada tem a ver com o Cânone Literário inglês. Penso no humor como a força vital dos meus romances.

Nos seus romances existe sempre um objecto central que funciona como um símbolo que aproxima amantes, amigos, cúmplices, estranhos. É o caso da capela, em Oscar e Lucinda, do avião em Illywhacker, por exemplo. Em A Química das Lágrimas, tudo gira em torno de um autómato...

Sim. Essa ideia faz todo o sentido, para mim.

A sua obra está povoada de marginais. E até mesmo em A Química das Lágrimas, personagens que são banais, no início, passam a comportar-se de forma mais "excêntrica". Esta "diferença" é que as torna mais interessantes, com mais potencial dramático?

Ah! As minhas personagens parecem-me muito normais e nada excêntricas. São normais e, também, muito interessantes.

Outro dos seus temas é o da orfandade. Numa entrevista disse que a experiência de ter sido enviado para um colégio interno o fez sentir-se órfão. No entanto nunca mostra complacência. Os seus heróis ou heroínas podem ser solitários e abandonados, mas não dignos de pena. Concorda?

Absolutamente. A sua leitura é a que eu gostaria que todos fizessem.

A Química das Lágrimas começa com duas tragédias, uma pessoal e secreta (a de Catherine) e outra global e mediática (o derrame de crude no Golfo do México). Foi uma jogada arriscada. Fê-lo para criar tensão dramática ou para dar espaço aos leitores para se concentrarem no tema da dor e do processo de cura?

A minha técnica, o meu processo de escrita é simultaneamente intuitivo e racional, é dialéctico, é uma equação e um salto de um altíssimo penhasco, no vazio. No início deste romance estava ocupado com a pessoa que reconstrói o autómato e com a que o encomendou. Uma vez que não os podia juntar, a tarefa parecia-me impossível. Estava tão preocupado com essa equação - a de que precisava de um autómato - que me levou algum tempo a perceber outras coisas. Lentamente, dei-me conta de que era esse mesmo autómato que me estava a fornecer a ideia da vida, da morte, da dor, de toda a existência humana.

O herói e a heroína existem em dois tempos diferentes, com dois séculos de permeio. É notória a sua atracção pelo século XIX. Será porque foi o tempo da última hipótese de grandes aventuras?

Revisito uma e outra vez o século XIX porque estou muito interessado em tudo o que se relaciona com a forma como vivemos hoje em dia, e em como chegámos até aqui. Tenho a impressão de que nos encontramos ainda no século XIX, a sofrer as consequências [da industrialização] nefastas para o planeta.

Acha que continuamos presos dos velhos dilemas - Natureza vs. Ciência, emoção vs. razão -, embrenhados nas velhas discussões dos nossos trisavós?

Em absoluto, sim.

Utiliza muito a imagem dos duplos. Em Parrot e Olivier na América, por exemplo, há uma referência clara a parcerias como a de Dom Quixote e Sancho Pança ou Robinson Crusoé e Sexta-Feira. São pares cómicos. Em A Química das Lágrimas, Catherine e Henry fazem um par trágico. Fartou-se de comédia?

Oh, não. Há sempre lugar para a comédia.

É possível arriscar o veredicto de que o tema principal dos seus livros é o amor? Em A Química das Lágrimas tudo gira em torno do amor de Cat por Mathew e de Henry pelo filho. Será esse o tal Mysterium Tremendum que desencadeia toda a acção?

Está 100 por cento certa.

Foi influenciado pelo tema do mito da criação de Mary Shelley, em Frankenstein?

Não, mas fui dando conta dos paralelismos, à medida que escrevia.

Será que o desejo da perfeição leva os seres humanos a criarem máquinas para que estas possam, de forma bizarra, suprir as suas necessidades? Foi essa a sua intenção, neste romance?

Nunca me agarro a uma só ideia, um só sentido, uma única explicação, quando se trata de humanos e de máquinas.

Foi para enfatizar a ideia da impossibilidade da perfeição que criou duas personagens muito belas - Carl, o "menino de ouro", e Amanda, a assistente de Cat -, mas ambas com um defeito? [o primeiro coxeia e a segunda é surda]

O processo artístico permite-me agir de forma intuitiva e, depois, lançar-me em busca de padrões e significados. Não me tinha apercebido deste, em particular, o que o torna ainda mais valioso, para mim.

Considera-se um romântico incurável?

Não, sou um pessimista incurável.

O que é que lê? Por exemplo, o seu romance Jack Maggs é muito dickensiano.

Adoro [Joseph] Conrad, [Henry] James e os maravilhosos primeiros livros de Jean Rhys; e toda a obra de Thomas Bernhardt bem como as duas últimas obras de WG Sebald [Austerlitz e Os Anéis de Saturno], que releio sempre com admiração e encantamento.

Porque é que introduz sempre a figura de jogadores(as) em todos os seus livros?

Francamente, não sei. O meu psiquiatra mostra tanta perplexidade em relação a esse assunto quanto eu próprio.

Também se socorre de alguma "magia", de truques, do extra-ordinário. De onde lhe vem esse interesse? De uma herança cultural australiana? Tem afinidades com outros autores do seu país?

Mantenho laços com muitos escritores, australianos ou não. E não sei bem o que é a "cultura australiana".

Posso fazer outra pergunta pessoal? Porque deixou a Austrália?

Vim para Nova Iorque "a banhos". Só quando cá cheguei me apercebi de que Nova Iorque não é um spa.

Disse uma vez que achava que era a única pessoa no mundo a perceber o filme Fellinni 8 ½. Neste romance põe Catherine a dizer a mesma coisa. Será que, como na versão apócrifa de Flaubert, é possível dizer que Catherine "é" Peter Carey?

[risos] Não. É melhor dizer que sou como as gralhas: pego em qualquer coisa que brilhe e dou-lhe um uso diferente.

Os estudiosos da sua obra referem sempre a forma original da sua relação com a História. Acha que a História é importante porque se aprende com ela, porque é uma forma de criar personagens interessantes, ou para estabelecer ligações entre pessoas e acontecimentos, através do "buraco negro" do tempo?

A História é a forma de descobrir a razão que nos leva a viver desta forma. Quero ver-nos como uma árvore com raízes. As minhas personagens nascem da minha exigência para que ajam contra a corrente, fazendo coisas excepcionais sem nunca, nem por um segundo, se tornarem fantoches, máquinas.

Há críticos que acham que cria sempre personagens esquisitas e situações improváveis. Acusam-no, também, de ser ou demasiado simpático, ou demasiado cómico ou demasiado ambíguo. Quer comentar?

Não. Mande esses críticos bugiar. É o que eu faço.

Acha que a leitura - no seu caso, a escrita de livros - podem contribuir para uma melhoria na vida das pessoas?

Tenho muito medo de que nos esqueçamos de ler. Quando desaparece a leitura ficamos perdidos na escuridão e na ignorância. Basta ligar a televisão para perceber o que eu quero dizer.

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