Quase ninguém sabe o que os governos estão a decidir na Rio+20

Foto
Um índio no metropolitano, a caminho da Cúpula dos Povos Ueslei Marcelino/Reuters

Não são apenas 40 quilómetros de densa selva urbana que separam Jacarepaguá do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. No Flamengo, onde a sociedade civil se reúne na colorida Cúpula dos Povos, quase ninguém parece saber o que os governos estão a decidir lá longe, na conferência Rio+20. Nem mesmo que na terça-feira ficou acordado um novo guião mundial para se tentar salvar o planeta.

"Fiquei sabendo por cima", diz o hare krishna Maha Guru, 33 anos, ou Marcos Gouveia de baptismo. "Não sei, estou aqui dentro desde que cheguei", alinha o argentino Alejandro Mariani, sentado na tenda do Movimento dos Sem Terra. "A única coisa que a gente ouviu falar é que estão discutindo um documento muito fraco", confessa Nathalia Barbosa, 16 anos, da Federação dos Bandeirantes do Brasil - uma organização semelhante à dos escuteiros.

Se há uma incógnita ainda não resolvida no grande circo montado à volta da Rio+20 é até que ponto a sociedade civil está de facto a ser ouvida nas decisões tomadas pelas Nações Unidas. Representantes de organizações não-governamentais tiveram assento nas salas de negociações, mas sem direito a falar. Ainda assim, puderam fazer o seu lobby directamente junto dos representantes governamentais nestas sessões. Nem tudo correu bem e pelo menos numa reunião, sobre os oceanos, as ONG foram convidadas a sair da sala no momento mais crítico da discussão, segundo relatou na terça-feira, numa conferência de imprensa, um representante da organização High Seas Alliance.

O que certamente não há é uma ligação umbilical entre o que se passa no Riocentro, onde estão os governos, e o Aterro do Flamengo, onde a Cúpula dos Povos é uma espécie de sinfonia de todas as causas sociais. Em cada uma das tendas que pontilham a língua de área verde à borda da água no Flamengo estão protestos, ou ideias, ou produtos, ou debates.

No espaço do Instituto Terra de Protecção Ambiental, dezenas de pessoas ouvem uma explicação detalhada sobre a constitucionalidade ou não do polémico código florestal brasileiro. Ao lado, na tenda Chico Science, o tema é educação ambiental. Mais à frente, pede-se liberdade para o povo sarauí, do Sara Ocidental. Adiante, os "catadores" de lixo reciclável debatem aspectos da profissão. E um grupo de grevistas da Universidade de Brasília veio à Rio+20 trazer as suas reivindicações: "Nós estamos pedindo aumento", explica um trabalhador.

Na tenda do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, vende-se cacau de agricultura biológica. A cachaça, também orgânica, já foi toda. A produção é do assentamento Terra Vista, na Bahia, uma antiga propriedade rural ocupada há duas décadas e onde Ayrton Baltazar, 72 anos, diz que não entram químicos: "Não mexo em veneno ou adubo há mais de dez anos".

O professor de educação física Neumar Ramos, 33 anos, veio de bicicleta desde Curitiba, no sul do Brasil, a 1100 quilómetros do Rio. A conferência formal da ONU é algo distante, da qual nada sabe. "A gente está totalmente fora", afirma. Cerca de 300 bicicletas se juntariam à "marcha dos povos", prevista para a tarde. "Para nós, a importância maior são os protestos, para mostrar que ainda estamos aqui e que não vamos desistir".

No outro extremo do parque, a Cúpula dos Povos é essencialmente indígena, com profusão de corpos pintados, cabeças com cocares, chocalhos, flechas, penas e incontáveis índios a vender artesanato. Cremilda Wassu, da tribo Wassu Cocal, do estado de Alagoas (nordeste do Brasil), também não sabe o que os governos estão a decidir no Riocentro. E também está ali para protestar. A sua tribo tinha, originalmente, uma área de 57 mil hectares para praticar o seu modelo de sustentabilidade. Hoje têm 2700 hectares. "As melhores áreas de plantação estão com os sem terra e com os fazendeiros. Para nós, é só serra e pedras", lamenta. "Como é que pode haver desenvolvimento sustentável indígena sem terra?", pergunta.

Algumas posições da Cúpula dos Povos, decididas em reuniões plenárias, têm sido encaminhadas para a cimeira dos governos. Também algumas organizações estão presentes em ambos os fóruns. Mas mesmo para quem tem conhecimento do que se está a passar no Riocentro, o sentimento não é favorável. A agricultora japonesa Mariko Hamaguchi teme um aspecto em particular do documento aprovado na terça-feira. "Economia verde, não", diz, através de um intérprete, usando uma metáfora como explicação: "A casa está quase destruída. Para recomeçar, é preciso construir a base, uma ideia nova. Ideia velha é só para quebrar o galho".

Hamaguchi pertence à Rede Civil do Japão para a Década das Nações Unidas para a Biodiversidade e tem acompanhado as discussões no Riocentro. Na Cúpula dos Povos, juntou-se aos protestos contra o nuclear - ela que vive a 170 quilómetros de Fukushima e que deixou de poder comer arroz integral, pois a radioactividade acumula-se na camada externa do grão. "Agora, só arroz branco".

Enquanto os cariocas passeiam no Aterro do Flamengo, beneficiando da tolerância de ponto concedida até sexta-feira, mais de uma centena de chefes de Estado e de governo deram ontem início à parte formal da Rio+20, em que será em definitivo o documento "O futuro que queremos", já acordado pelas delegações de 193 países na terça-feira.

Com 49 páginas e 283 parágrafos, muitos com a impenetrável linguagem diplomática das Nações Unidas, o documento aposta na económica verde como "instrumento importante" para o desenvolvimento sustentável e diz que é preciso mais recursos para os países menos desenvolvidos, sem especificar quanto, nem de onde virá o dinheiro.

Também cria um fórum ministerial para a sustentabilidade no Conselho Económico e Social da ONU e lança um processo intergovernamental para discutir futuros "objectivos de desenvolvimento sustentável".

Embora haja mais algumas novidades, o texto tem sido criticado pela falta de metas e datas concretas para pôr em prática o que estabelece.

A série Rio+20 é financiada pelo projecto PÚBLICO Mais
Sugerir correcção
Comentar