A dança vai fazer “companhia limitada” aos velhos que estão presos em casa

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A Companhia Limitada subiu aos prédios da zona histórica de Lisboa e encontrou “casas a cheirar a solidão” Miguel Manso

A dona S. não sai de casa há três anos, desde que lhe amputaram a segunda perna. Mora num segundo andar de Lisboa, sem elevador, e a cama é o seu posto permanente de vigia. Vê tudo, menos o que está para lá da janela, na rua. Há semanas, um grupo de jovens artistas foi visitá-la, ouvi-la, e está agora a preparar uma peça única, só para ela, a ser encenada lá em casa. Estão a fazer o mesmo com mais seis idosos em situação de isolamento e imobilidade.

O projecto é do Sou – Movimento e Arte, uma associação cultural com alicerces nos Anjos que faz questão de cultivar a proximidade com a comunidade que se estende ao Intendente, Martim Moniz – Mouraria – e Baixa. A ideia era chegar até esses velhos que, por qualquer motivo, vivem em condições débeis na cidade, muitas vezes presos nas suas próprias casas.

O primeiro passo foi convidar Madalena Victorino para coordenar o processo criativo. A coreógrafa tem uma longa história no desenvolvimento de projectos artísticos junto da comunidade. Há três décadas que o faz. Exemplo recente é o espectáculo Vale, que em 2010 venceu a primeira edição dos Prémios Autores, da SPA, na categoria de coreografia de dança. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa entrou em cena de seguida, para ajudar na identificação de pessoas nestas condições que estivessem disponíveis para receber o grupo.

Sete desses idosos abriram-lhes as portas das suas casas – e eles começaram a ouvir de tudo. Histórias de violência doméstica, de doença, de negligência, de vidas duras que estão a acabar em “casas a cheirar a solidão”, mas também histórias de amor, companheirismo e vontade infinita. “Muitos vivem em prédios altos, no quarto ou no quinto andar, e não conseguem sair. Sabem que nunca mais vão sair de casa e têm uma vontade louca de ir à janela – e não conseguem.”

“Havia pessoas que batiam palmas quando nós chegávamos, como se fosse já o espectáculo”, conta Madalena Victorino ao PÚBLICO, a lembrar as primeiras visitas, que serviam para conversar com os idosos e daí recolher “matéria ‘coreografável’, dramatúrgica, que lhes pudesse interessar”. Foi assim que começaram a construir os sete “objectos performativos” que, no final deste mês (dias 21, 29 e 30), vão apresentar nas casas de cada um deles.

Companhia limitada

É uma história coreografada para cada uma delas – e só para elas. Para a dona S., que conta 87 anos (e três de prisão à cama), estão a preparar uma peça que a faça voltar à janela e a ver a rua. Já o senhor B., que era polícia e faz questão de dizer que não tem “vergonha nenhuma” disso, verá a sua casa ocupada por dez mulheres, todas em divisões diferentes, todas ocupadas no furto encenado de dez colares de pérolas. O senhor B. também tem um posto de vigia de onde vê tudo – a cadeira de rodas. Só não consegue descer os cinco andares sem elevador. Já não sai.

Há uma razão para a peça do senhor B., de 85 anos, ser integralmente feminina: durante a conversa inicial, não revelou qualquer interesse nos homens que lá estavam. Tem isso em comum com a senhora F., cujo instinto a levou a ignorar as mulheres e a virar-se apenas para os homens. A senhora F., se alguma vez teve travões na língua, perdeu-os com a idade (tem 85): é dona de um aguçado sarcasmo e de um “gosto pelo vernáculo” e pelo álcool que lhe vão fazer aparecer à janela uma zaragata entre três homens e atrás dela um agressivo coro de mulheres barbudas. Será “uma representação humorística, como ela gosta”. E não fica por aí: está ainda a cozinhar-se um assassinato nas escadas, “para ela se rir às gargalhadas”.

Madalena Victorino diz que a senhora F., que entrou em decadência física e mental desde a morte do marido e há dois anos que não sai de casa, é como “uma daquelas figuras enormes da Paula Rego, com um sentido de humor muito cru, irónico, burlesco”. Mas nem todos são assim. “São muito diferentes. Há pessoas de uma enorme delicadeza e doçura, e há pessoas muito cruéis.” O que não fez com que o grupo deixasse qualquer um deles de fora. A ideia é que os espectáculos explorem um “lado de aproximação e companhia, ainda que limitada, a essas pessoas. Daí o nome do projecto: Companhia Limitada”.

A dona O. – a “mulher olé”, como a chamava o marido com o qual evitava deitar-se, inventando à noite o que cozinhar e o que coser – é a segunda mais nova dos idosos com que o grupo está a trabalhar: tem 83 anos (o senhor J., com 82, é o mais novo).

Porém, o seu processo de acamamento começou há cerca de uma década, na sequência de uma queda, e há anos que não sai de casa. De uma vida familiar atribulada, sobraram-lhe as queixas e as acusações quando já quase não tem a quem culpar. Visitas, só recebe as dos funcionários da Santa Casa. Mas não vive sozinha. Há cinco anos que tem a dona N. como companhia permanente.

Primeiro espectáculo aos 94

A dona N. não está presa. Sai de casa com muita dificuldade e duas canadianas a amparar as debilidades que três internamentos hospitalares e uma prótese na anca acrescentaram ao acaso de ter 94 anos. Mas gosta tanto de descer à rua que uma vez por semana, às vezes duas, faz do custo benefício e sai. Nunca assistiu a um espectáculo e a estreia será logo com uma peça sobre ela e só para ela. A seu lado, para a guiar, estará sempre alguém do grupo. Ao lado dela e de todos os outros, para que não fiquem dúvidas do que estão a ver.

“Serão conversas sobre dança”, adianta Madalena Victorino. “Conversas que não sejam sobre as doenças – os diabetes, os cancros… Quando perguntarem ‘O que era aquilo?’, estará lá alguém para responder.” É nessa altura que o senhor B., por exemplo, vai poder ficar a saber que a narrativa que lhe estão a contar tem que ver com a “ganância feminina” e que a coreografia é inspirada no seu papel de parede, uma coreografia que como esse papel de parede se repete nas várias divisões da casa, com um ritmo próprio.

Há ainda o senhor J. e a dona S., outra dona S., que vive ligada ao oxigénio devido a uma insuficiência respiratória que a impede de se afastar de casa. Como mora num rés-do-chão, aos 90 anos continua a passear-se pelo patamar. O senhor J. vai mais longe, “anda sempre a passear, como que a fugir de si próprio”, nota Madalena Victorino. “Tem um sorriso e um sentido de humor incríveis”, mesmo que esteja quase cego – e recuse tratamento.

A Companhia Limitada vai entrar nas casas destas pessoas e tentar fazer chegar alegria onde por norma só se encontra solidão. Para já, é só para eles – mas é possível que estes “objectos performativos” sejam recuperados para o Festival Todos, que em Setembro voltará ao Largo do Intendente, em Lisboa, para a quarta edição. Apesar de ainda não ser certo, isso está longe de ser o essencial. Esse está prestes a ser cumprido. De resto, parafraseando a coreógrafa Madalena Victorino, “é quando o movimento ganha intenção que ele ganha beleza”.

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