Um retrato na era da solidão

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Como antes descreveu os anos Thatcher, Jonathan Coe quer agora mostrar um país de espaços impessoais, cadeias de restaurantes em auto-e NUNO FERREIRA SANTOS

Serão os homens em perda de Jonathan Coe “um longo auto-retrato”? Em A Vida Privada de Maxwell Sim pergunta se não teremos valorizado demasiado a literatura, numa fuga à realidade

Um homem que fala com uma voz feminina gravada no seu carro. Um homem que atravessa sozinho as estradas de Inglaterra e que, incapaz de se relacionar com os outros, se apaixona pelo seu GPS. Maxwell Sim, a personagem do mais recente livro de Jonathan Coe, A Vida Privada de Maxwell Sim (Dom Quixote) é - como acontece em várias obras anteriores do autor britânico - um homem frágil, em perda e perdido no mundo. "A possibilidade de estar a desenhar um longo auto-retrato torna-se difícil de evitar...", diz o autor.

Como o humor atravessa sempre a escrita de Coe - que tem editados em Portugal A Casa do Sono, Rotter's Club, O Círculo Perfeito, Que Grande Banquete! e A Chuva antes de Cair - esta tragédia humana desenha-se através de situações inevitavelmente cómicas, como a cena em que Max despeja todo o seu desejo de comunicação num passageiro que vai ao lado no avião, para acabar por perceber que o homem tinha, entretanto, morrido.

Mas o livro pretende ser também um retrato da Inglaterra na era da solidão. Como antes descreveu os anos Thatcher, Coe quer agora mostrar um país de espaços impessoais, cadeias de restaurantes em auto-estradas, amigos no Facebook que não são amigos (num momento do livro Max fica feliz ao encontrar centenas de mensagens no seu email, antes de descobrir que são todas, à excepção de uma, spam). Afinal, este é um mundo em que um homem se apaixona pela voz do GPS.

Conta a história de um homem que é não apenas banal mas quase irrelevante. É difícil criar drama a partir da banalidade?

Maxwell Sim pode ser "irrelevante" para a maioria das pessoas que o rodeia, mas para si próprio é muito relevante! Gosto de pensar que não há ninguém no planeta que não seja interessante, ninguém que não tenha uma vida interior rica se nos dermos ao trabalho de a explorar.

Quanto a "criar drama a partir da banalidade", parece-me ser uma tarefa muito importante para os escritores de hoje. Afinal, estamos rodeados pela banalidade: à medida que todos os valores espirituais são, lentamente, arrancados da nossa existência, enfrentamos uma luta ainda mais difícil para encontrar algo com significado nas nossas rotinas diárias. Com este livro, quis mostrar que existe beleza, riso e tristeza nas circunstâncias aparentemente mais vulgares.

Maxwell Sim é, como algumas das personagens dos seus livros anteriores, um homem fraco, incapaz de alterar a sua própria vida. Nos seus livros, as mulheres tendem a ser mais fortes que os homens?

É capaz de ser verdade. Dos meus nove romances, pelo menos seis ou sete são centrados num homem fraco, incapaz de tomar decisões ou de assumir o controlo da sua vida. A possibilidade de estar a desenhar um longo auto-retrato torna-se difícil de evitar... Mas quando escrevo sobre mulheres estou, é claro, a escrever de fora da minha própria experiência, e por isso aí posso fazer algo diferente e imaginar como será ser forte. Talvez essa seja a explicação.

No seu livro anterior, A Chuva antes de Cair, escreveu sobre uma mulher incapaz de amar a filha. Neste há uma relação difícil entre um homem e o filho. É uma coincidência?

Não, não é coincidência. Embora os dois romances tenham tons diferentes, foram pensados como peças que se podem acompanhar uma à outra: um é sobre as qualidades que uma mãe passa à sua filha, a outra é sobre as qualidades que um pai passa ao filho.

Começo a pensar que todos os meus romances só podem ser entendidos claramente em relação umas com as outras. Já não penso neles como romances separados - mas sim como capítulos de um todo continuado. Claro que é ingenuidade da minha parte pensar que os leitores os vão ver assim: com tanta literatura para se escolher, considero-me um homem de sorte de alguém escolher ler um ou dois dos meus livros.

Sente que todas as explicações sobre a maneira como lidamos com as nossas vidas estão na infância e na família? A questão da família é cada vez mais importante nos seus livros?

Sim, desde que tive as minhas filhas (a primeira nasceu em 1997), o assunto começou a preocupar-me, e até a obcecar-me. É possivelmente por causa disso que se pode notar uma transição nos meus romances, com um afastamento dos temas sociais e políticos e uma aproximação a questões mais íntimas como as relações entre pais e filhos e entre casais.

A história de como nos tornamos as pessoas que somos começou a parecer-me a mais fascinante de todas as histórias: começando com a probabilidade de um milhão para um do nosso nascimento, e continuando com a profunda influência genética e de educação que os nossos pais têm sobre nós. Vendo as minhas filhas crescerem, apercebo-me de que sou, de certa forma, um dos "autores" da história da vida delas, e isso é uma enorme responsabilidade - uma responsabilidade muito maior do que a de escrever romances, que, em comparação, parece bastante trivial.

Como é que lhe ocorreu a ideia de um homem que se apaixona pelo seu GPS?

A partir do cruzamento de dois episódios. O primeiro foi um almoço há alguns anos, com dois amigos homens. Todos tínhamos várias coisas em comum, incluindo o facto de estarmos a educar os nossos filhos, mas percebi rapidamente que a única coisa sobre a qual eles queriam falar - ou eram capazes de falar - eram os seus computadores. Isso levou-me a pensar na relação próxima (quase romântica e sexual) que os homens têm com a tecnologia.

O outro foi um momento em que caí na mesma coisa. Comprei um carro novo que vinha (o que me aconteceu pela primeira vez) com um sistema de GPS, ouvia aquela voz feminina a dar-me orientações, enquanto a minha mulher tentava falar comigo, e disse-lhe para ela se calar (a minha mulher, não o GPS). Fiquei chocado por me aperceber que tinha escolhido uma relação mais próxima com uma voz computorizada do que com a companheira da minha vida. Pareceu-me um momento revelador - e comecei a pensar na história de um homem que estava tão sozinho, com uma vida tão disfuncional, que sentia que era mais fácil ligar-se a uma peça de tecnologia do que a um ser humano.

Quer que este livro seja um retrato de um tempo, da vida na segunda década do século XXI?

Sim, queria muito conseguir isso. Porque ainda sou mais conhecido no meu país por Que Grande Banquete!, a minha obra sobre os anos 80, a época de Thatcher, as pessoas estão sempre a perguntar-me quando é que vou escrever outro romance que seja o retrato de uma época (os leitores britânicos parecem ter um apetite inesgotável por este tipo de ficção, como se um simples romance pudesse sarar as dificuldades políticas de uma nação - mas talvez estejamos apenas a recapturar aquilo que vemos como os dias de glória literária do século XIX, com [Charles] Dickens, [William Makepeace] Thackeray e [Anthony] Trollope).

Esta questão surpreende-me, porque para mim Maxwell Sim pretendia ser um retrato da Grã-Bretanha em 2009. Mas em vez de me centrar nos acontecimentos políticos "importantes" desse ano, optei por evocar os mais banais, a natureza da vida quotidiana que o capitalismo criou neste país: um mundo de auto-estradas cheias, de longas viagens de carro, comércio, vendedores, restaurantes impessoais, e pessoas tão preocupadas com os seus gadgets tecnológicos que parecem ter-se esquecido de como se relacionar umas com as outras.

Nos seus livros surgem frequentemente personagens homossexuais - e neste isso volta a acontecer.

Tento que os meus livros sejam tão representativos quanto possível de todas as partes da sociedade, por isso seria estranho não incluir ocasionalmente personagens gay. Além disso, acho que na Grã-Bretanha temos dois pesos e duas medidas em relação a esta questão. É suposto que toda a gente seja tolerante em relação aos diferentes estilos de vida, mas há ainda muita homofobia não assumida, e continuam a existir histórias de violência contra a comunidade gay. Por isso acho que continua a ser um tema político importante.

Este livro tem uma reviravolta no final - ou melhor, duas. De certa forma, parece evitar mergulhar profundamente no lado mais negro da personagem e da história. Porquê? Decidiu que Max merecia uma segunda oportunidade, apesar de nada ter feito para isso.

Toda a gente merece uma segunda oportunidade. O facto de Max ser sempre passivo não significa que não lhe devemos dar uma segunda oportunidade - ele viveu uma vida sem culpas, talvez até virtuosa. No final, por muito aborrecido que Max possa ter parecido ao longo do caminho, eu terei falhado se o leitor não tiver acabado por gostar dele: senti um grande afecto por ele quando terminei, e penso que isso se percebe na forma como o "autor" fala com ele no último capítulo.

E, no segunda reviravolta, transforma-o apenas num produto da imaginação do escritor. Foi planeado desde o início ou foi um impulso que teve enquanto escrevia?

Não, não foi planeado - foi uma ideia que tive a dois terços da escrita do livro, e que imediatamente pareceu certa e inevitável. Se tivesse sabido o quanto alguns leitores iriam detestar essa reviravolta, talvez tivesse decidido não a fazer - por isso estou satisfeito por não ter imaginado os sentimentos que ele iria despertar. Para mim é uma consequência lógica dos temas do livro. Este é um homem que acha mais fácil relacionar-se com uma pessoa imaginária (a voz do seu GPS) do que com os amigos, a família e os amantes que tem à volta. Consideramos esta situação trágica, e até um pouco absurda.

Mas depois, por alguma razão, achamos normal e desejável passar horaslendo romances sobre as aventuras de pessoas imaginárias - pessoas imaginárias com as quais os leitores estabelecem facilmente relações próximas. Escrever sobre as relações falhadas de Maxwell fez-me olhar para todas as relações na minha vida, e fez-me pensar porque é que dediquei tantos anos a criar, a escrever sobre e a estabelecer relações próximas com seres completamente imaginários. Não é estranho fazer-se isso? Era só isso que eu queria: levar os leitores (e escritores) a darem momentaneamente um passo atrás em relação àquilo a que chamamos "literatura" que nós (no Ocidente) tanto admiramos, e perguntarmo-nos se não lhe teremos dado demasiada importância.

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