Uma naifa manchada de libido

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Pela entrada da poesia de Margarida Vale de Gato Não se Deitam Comigo... trancou a sua porta a poemas nascidos ?de homens

“Não se Deitam Comigo Corações Obedientes”, primeiro disco de A Naifa em que João Aguardela se sente mas não (se) toca, cresceu à volta da poesia de Margarida Vale de Gato. Começa hoje a ser vendida nos concertos esta colecção de canções para uma mulher vivida

A 26 de Abril de 2010, o crítico literário José Mário Silva publicava no seu blogue Bibliotecário de Babel - como faz regularmente com tantos outros versos - quatro poemas de Margarida Vale de Gato. José Mário cruzara-se já com A Naifa, ao emprestar um poema da sua safra à voz de Maria Antónia Mendes no álbum de estreia, "Canções Subterrâneas". Nessa altura andava ainda A Naifa a revolver nos pertences do fado e a escolher com cuidadoso critério a decoração que ajudaria a erguer uma linguagem distinta de tudo o mais na música portuguesa. O fado já antes fora objecto de variações infectadas pela música popular e pela electrónica - a maquilhagem fácil para a habitual máscara de modernidade -, com resultados frequentemente grotescos. A Naifa era outra coisa: barricara-se num reduto de elegância, contenção e curiosidade rara pela poesia portuguesa contemporânea. A identidade estava já encontrada e firmemente fixada nesse disco de estreia. Mas no dia em que Luís Varatojo, o homem da guitarra portuguesa, ligou o computador e bateu com os olhos nos poemas de Margarida Vale de Gato, A Naifa precisava de um abanão estético depois de um violento abanão emocional - a morte antes da hora do baixista João Aguardela.

Já havia um par de poemas soltos a flutuar nas primeiras ideias de uma Naifa que ainda não sabia se o queria continuar a ser. O golpe profundo e rasgado pelo desaparecimento de Aguardela não tinha ainda estancado e as emoções eram ainda demasiado turvas. Mas depois apareceram aqueles versos limpos a Varotojo, uma espécie de epifania com jeitos de bússola, e o guitarrista correu a comprar o livro de Vale de Gato, "Mulher ao Mar". "De repente vemos uma série de textos, uma série de histórias que têm a ver connosco, ainda por cima numa linguagem diferente daquela que usámos para trás e a que estamos habituados", lembra. "Aquilo era A Naifa, mas era também uma Naifa nova". E assim, descoberto o "primeiro impulso" e colocado ao centro, todas as outras peças tiveram de aninhar-se nos seus recantos. "As músicas foram nascendo à volta daqueles poemas e começámos a perceber que a alma estava lá". Desses quatro poemas iniciais, descobertos no Bibliotecário de Babel, um entendeu-se desde logo com a guitarra e a voz, e foi ficando até ao fim. "Émulos", aquele que permite a Mitó cantar "Foi como amor aquilo que fizemos / ou tacto tácito? - os dois carentes / e sem manhã sujeitos ao presente; / foi logro aceite quando nos fodemos".

Através da poesia de Margarida Vale de Gato (MVG), A Naifa "tornou-se uma gaja mais vivida, mais adulta" que exigiu uma postura semelhante aos restantes textos, mesmo que alguns escritos de Adília Lopes ou Ana Paula Inácio estivessem já seleccionados e outro ("De Cara a la Pared"), de Renata Correia Botelho, se impusesse pelo desamparo belíssimo do verso "o coração que me deixaste é uma casa difícil de habitar", numa referência evidente a Aguardela. "A personagem cresce mais um bocadinho, fica mais libidinosa", concorda Maria Antónia (Mitó) Mendes, vocalista. Talvez por isso, pela entrada avassaladora de MVG na vida d'A Naifa e pela imposição desse lastro sensual feminino, "Não se Deitam Comigos Corações Obedientes" trancou a sua porta a poemas nascidos de homens. Mitó explica: "Se calhar tem a ver com a maneira de as mulheres escreverem - para aquilo que nós pretendíamos, esta coisa de uma personagem madura, talvez só as mulheres estejam a escrever sobre isso". "Eu diria mais", responde Varatojo. "Se calhar só as mulheres é que estão a fazer alguma coisa de jeito. Estão a tratar as coisas pelos nomes, que é o que interessa". O etéreo e abstracto masculino escorraçado pelo carnal e visual feminino.

Este correr atrás das palavras, deixá-las tomar as rédeas dos instrumentos e oferecer-lhes o comando das operações torna-se uma estratégia certeira de estimulação e excitação na vida criativa do grupo. Daí que, além da alergia de A Naifa ao compromisso - que existiria se encomendassem letras aos poetas e a elas ficassem presos -, lhes seja mais intrigante e compensador forçarem a reinvenção na sua própria casa como resposta a uma exigência exterior. Trocam, portanto, o conforto enganador de moldarem as palavras a uma linguagem fechada por uma expedição em busca de formas de satisfazer os poemas. Em termos estritamente musicais, aliás, Varatojo tinha apenas uma vaga ideia do que queria concretizar neste disco: "sintetizar, fazer menos, em vez de tantas camadas e tantos sons". Algo que foi ajudado pelo próprio tom dos textos - sempre que cedia à tentação de complexificar e acrescentar camadas, os ambientes da escrita chamavam-no à razão e boicotavam-lhe o excesso. "Deitei fora muitas guitarras", sempre que não se colavam às palavras, confessa Varatojo. Sem gorduras, o álbum soa por isso cru. Não inventa. "Às vezes é só uma nota, mas é aquela nota. A minha sonoridade na guitarra vai ficando uma coisa mais cubista, menos expressionista".

Luto no palco

Nesse momento, quando perceberam que havia uma alma nas novas composições e uma voz diferente a levantar-se, Varatojo, Mitó e Samuel Palitos (baterista) perceberam que fazia sentido tentarem realmente continuar com Sandra Baptista - a companheira de sempre de Aguardela - a ocupar-se do baixo. Mesmo depois de o convite ser lançado a Sandra, mesmo depois de ela aceitar, nada era vinculativo, não era irreversível. Era uma tentativa, uma outra forma de luto. Assim, diz-nos Varatojo, não tendo sido uma decisão dura seguir caminho sem Aguardela, "teve de haver ponderação e sobretudo tempo". Decisivo, no entanto, seria o convite inicial para Sandra entrar em palco acompanhada de um arrepio colectivo que percorreu o público que assistia ao espectáculo Megafone 5, no CCB, em Novembro de 2009. Foi a partir daí, desse pequeno prolongamento na vida do grupo, que a ideia de haver um futuro para A Naifa ganhou um corpo. Depois, foi deixar a poeira assentar, desacelerar as emoções, esfriar a cabeça, perceber se seria mais positivo do que negativo e se havia coisas novas para dizer e fazer. E foi neste último ponto que a poesia de Margarida Vale de Gato deu um murro na mesa. O trunfo estava jogado e dificilmente seria mais alto.

Após essa primeira experiência, um shot de comoção, ao ver e ouvir Sandra de dedos a percorrer o baixo nas mesmas notas que João inventara, A Naifa arriscou uns quantos concertos de promoção ao lançamento da fotobiografia "Esta Depressão que me Anima". "Apetecia-nos fazer mais uns espectáculos", diz Varatojo. "E essa digressão", acrescenta Mitó, "serviu, mesmo para a Sandra, como parte do processo de luto". E a química a quatro foi fermentando longe de olhares indiscretos, em concertos na Namíbia, no Botswana, por vezes com Luís fechado no hotel a trabalhar e os outros a partirem em safaris. Só depois começaram a frequentar o estúdio, sem pressas. Varatojo: "Nem tínhamos a certeza se a Sandra como baixista se iria adaptar. A experiência com Megafone tinha sido muito ténue, tocou baixo em dois ou três espectáculos. Podia não funcionar, mas funcionou". Até porque, justifica Mitó, "de todas as pessoas do universo ela será a que tem uma abordagem mais parecida àquela que o João teria musicalmente". "Nesse aspecto, trabalhar com a Sandra é engraçado. Porque é novo mas parece que não é. As coisas mudaram mas é como se não tivessem mudado muito e em termos emocionais é mais fácil lidar com a situação", dizem ambos.

Mas "Não se Deitam Comigo Corações Obedientes" não acaba na música ou na poesia e completa-se ainda com uma série de ilustrações de Marta Nunes, Liliana Bernardo, Paulo Ansiães Monteiro e Bernardette Ermida, seleccionados a partir de um convite/anúncio colocado na internet que pedia o envio de imagens específicas para cada um dos poemas. Na cabeça deles, é claro que "A Naifa é uma banda de colaboração". Primeiro que tudo, com os poetas da sua geração, mas desde o segundo álbum também com ilustradores, pintores e fotógrafos. Ou como, por estes lados, a música não se basta a si mesma e se deita com outras leituras. Ou como, por estes lados, a música não pretende veicular a verdade absoluta sobre cada poema. Ou como, cantava Mitó em 2006, "a verdade apanha-se com enganos". O que não é mentira alguma.

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