Alan Hollinghurst: o imoralista

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Apelidado de “guru gay” da literatura e com fama de distante, Alan Hollinghurst aplica na sua obra uma mistura de erudição com ausência de artifício. Como nesta entrevista

Apelidado de "guru gay" da literatura, Alan Hollinghurst é um grande escritor de romances nos quais, como manda a tradição, as tramas são cuidadosamente construídas, as personagens claramente delineadas e os vários níveis em que a acção se desenrola englobam habilmente o sexo e a política, o privado e o público, num jogo intrincado. Sob figura tutelar do mestre Henry James, escreve sobre o deslumbramento, a excitação e os perigos das paixões homossexuais, enquanto traça, com rigor impiedoso, os contornos da sociedade britânica do último século.

Desde que se instalou em Londres escreveu para o "Times Literary Supplement" e partilhou uma casa com o ex-Poeta Laureado Andrew Motion, amigo dos tempos do Magdalen College, Oxford, onde estudou.

Três dos seus romances - "A Biblioteca da Piscina", "A Linha da Beleza" (Prémio Booker) e, agora, "O Filho do Desconhecido" estão publicados em Portugal. (Faltam "The Folding Star" e "The Spell", e a primeira obra, "Confidential Chats with Boys").

Em "O Filho do Desconhecido" a acção cobre um período que se estende desde as vésperas da Iª Guerra até 2009 e gira em torno de Cecil Valance, aristocrata carismático que, tal como o seu modelo, Rupert Brooke, é um dos jovens poetas que morre durante o conflito.

Em "O Filho do Desconhecido" a acção cobre um século mas a narrativa avança em saltos e comprime-se em cinco marcas temporais definidas. Um, dois, três dias podem conter uma ou mais acções cujas consequências se prolongam ao longo dos anos; gestos fortuitos têm repercussões inimagináveis.

É verdade que a estrutura deste livro é peculiar. Primeiro, queria escrever um romance sobre a Iª Guerra, mas sem referir a guerra propriamente dita. Depois, pensei em criar um grupo de personagens que se encontram antes da guerra, que se separam devido a ela e que se cruzam de novo, mais tarde, mas de forma muito diferente.

A época anterior à Iª Guerra surge como um paraíso em que ninguém se apercebe da tragédia que se avizinha...

É claro que as pessoas olhavam para essa época com nostalgia e, aqui no livro, essa ideia está representada no poema de Cecil Valance, "Dois Acres", que não é nada bom mas passa a ser considerado o retrato perfeito de um universo maravilhoso que desapareceu. Tive a intenção de transmitir ao leitor, na primeira parte do livro, a sensação de mergulhar num romance de E.M. Forster, reminiscente de um género aparentado com a "crónica".

Desde o início que o leitor é confrontado por inúmeras referências a outras obras do cânone literário, de Forster a Ian McEwan, de Shakespeare a Evelyn Waugh, de Henry James a Iris Murdoch. É conhecida a sua cultura literária e o seu interesse por Proust. No entanto essas alusões são apresentadas de forma irónica.

Diverti-me muito [risos]. É claro que enquanto a acção se passa nos anos 1920 fui buscar muita coisa a Forster, a Waugh, a Huxley, à literatura da altura e é verdade que senti que estava a atravessar o território desses escritores e não o meu. Apercebi-me que o conhecimento do mundo para as pessoas dos anos 1930 lhes vinha da leitura de romances.

Há uma mudança na terceira parte do livro, já passada em 1967 porque a partir daí tudo muda. Os anos 1960, para mim, já não são vistos através da lupa de outros escritores porque eu já estava presente e posso recordar.

As relações amorosas são importantes e a que se desenvolve entre Peter e Paul - em "O Filho do Desconhecido" - é uma réplica, mais cínica e desprendida, da que ligou George a Cecil, meio século antes?

Deveriam ser semelhantes, no que diz respeito ao facto de haver, nos dois casos, um elemento que domina o outro. Por exemplo, Peter, tal como Cecil, é um homem mais experiente e sofisticado. Mas os tempos são diferentes.

Em "A Biblioteca da Piscina" Lord Nantwich quer que William Beckwith escreva a sua biografia. Em "A Linha da Beleza" Nick Guest está a trabalhar na biografia de Henry James. Em "O Filho do Desconhecido" há referências a biógrafos, a biografados. Cecil morre novo na Guerra, o que permite a sua idealização. Este processo tem a ver com a sua obsessão pela biografia, como género, e pela ideia de que a biografia é uma forma, por vezes perversa, de fazer História?

Pensei nisso de forma não sistemática mas, de certa forma, este livro é sobre a história da biografia no século XX. Nos anos 1930 não era suposto revelarem-se detalhes íntimos sobre as pessoas, sobre as famílias.

Os membros do Grupo Bloomsbury alteraram isso.

Sim. Tive a intenção de espicaçar a curiosidade do leitor, não revelando muita coisa. A mãe de Cecil, por exemplo, é uma espécie de feroz "polícia de costumes", atenta ao mínimo detalhe que é veiculado sobre a vida do filho. (Isto em 1926 quando ela encomenda as "memórias" de Cecil a Sebastian Stokes). Mas, em 1967, a lei (Sex Offences Act) descriminaliza a homossexualidade em Inglaterra. Na terceira parte do livro, por altura da festa de Daphne, passa-se de um tempo de boatos e de intrigas para uma época de informação, de novas possibilidades de liberdade - e Paul Bryant percebe que pode descortinar com maior clareza o que se passou décadas antes.

Há algo novo neste livro que não surge no resto da sua obra: o leitor assiste a um processo de envelhecimento.

Nunca o tinha feito. À medida que os anos passam tornei-me mais sensível às ironias do tempo. Aqui, esse aspecto está patente no encontro do jovem Paul com Daphne, quando ela já é uma senhora de idade. Apesar da estranheza, Paul pode imaginar, como sempre fazemos com as pessoas mais velhas, o que ela já terá vivido, toda a sua história.

Existe uma tensão, criada para dar intensidade à trama, entre o que se passa realmente e o que as personagens imaginam que aconteceu. É esta a sua ideia de construção romanesca?

Sim. Deixo muitas coisas por explicar porque na verdade é difícil descobrir toda a verdade e não queria fazer um género de livro como "Possessão" em que a autora (A.S. Byatt) inventa toda uma escrita de época. Não me interessa esse tipo de réplicas.

A poesia é outro género nas referências deste livro. A sua carreira começou como poeta. Aqui, "Dois Acres" é o motor de toda a história. E foi escrito por si.

O poema não é grande coisa. É muito difícil escrever má poesia [risos]. Mas pensei que era bem ao estilo dos poemas "georgeanos" e deu-me prazer recriar aquele imaginário.

Foi buscar as referências ao "verdadeiro" poeta Rupert Brooke?

Sim, de cuja poesia não gosto. Mas a minha mãe adora e eu fui criado com o som de muitas das suas frases. O que se conhece dele não é bom mas perdura porque morreu novo, tornou-se um ícone e foram necessárias décadas para que se percebesse a fraca qualidade da sua obra.

"O Filho do Desconhecido" está cheio de escritores: o poeta, o seu irmão, os seus biógrafos, historiadores como o seu antigo amante George e a mulher, Madeleine, etc. Dá-lhes essa importância porque são todos eles que deixam testemunhos, por complexos ou díspares que sejam?

Sim, claro.

E que fazem ecoar as opiniões e as memórias como quando, na segunda parte do livro, várias pessoas visitam a capela da casa dos Valance e tecem considerações sobre a estátua de Cecil. A ironia reside no facto de a estátua ser uma "representação", feita por alguém que nem sequer o conhecera...

Sim, os seus íntimos são confrontados com essa "representação" - ligada a uma certa ideia de heroísmo - que, em muitos aspectos, colide com as memórias de cada um. No início da Iª Guerra havia uma certa galanteria, uma forma de ir para a batalha semelhante à dos tempos medievais, e ninguém estava preparado para o lado mecânico e mortífero de um conflito moderno e para o consequente banho de sangue.

Na sua obra existem sempre relações amorosas, sentimentais a três (ou a quatro) e a introdução de personagens femininas tem um papel importante: as irmãs - Catherine em "A Linha da Beleza" e Daphne neste livro - funcionam como catalisador do desejo erótico entre rapazes. E há ainda as mães, ferozmente protectoras, e as "esposas" que são, decididamente, maçadoras.

[Risos] Bem, escrevi tanto e tão intensamente acerca de relações homossexuais que, neste livro, onde existe muita bissexualidade, quis escrever acerca de outro tipo de relacionamentos, embora nunca veja as coisas em termos segregacionistas. Trabalhei muito a figura de Daphne, a sua complexidade, a sua evolução, a sua busca de perfeição. Ela perde o pai muito nova e ao longo da vida persegue um certo tipo de homens, homens que irão, também, desaparecer.

A sua forma de evitar ser moralista remete-nos, de novo, para "A Linha da Beleza", em que explora o efeito devastador da Sida nos anos 1980. Recorda que havia quem defendesse que esse flagelo era uma punição da homossexualidade.

Sim, a comunidade "gay" teve de se confrontar com a doença e com a crueldade das pessoas. A sociedade mudou muito e, felizmente, entrámos numa época de liberdade e "normalidade".

Nos seus livros descreve as relações homossexuais masculinas - paixão emocional e erótica, muito física -, emoções, sentimentos de euforia e de perda, com enorme liberdade. Mas fornece-lhes um contexto universal.

Sim. Não existem relações idealizadas. Gosto de escrever sobre personagens que são estranhas, excêntricas.

Qual é a sua opinião sobre casamentos entre pessoas do mesmo sexo?

Já são possíveis, em Portugal?

Sim, desde 2010.

Em Inglaterra existem desde 2005. Passei dois anos a ir a casamentos. Agora, já comecei a ir aos divórcios [risos]

Em 2009, foi um dos convidados a eleger dois ícones "gay" para uma exposição na National Portrait Gallery. Escolheu o actor preferido de Andy Wharol, Joe Dallessandro, e o poeta vitoriano Gerard Manley Hopkins. Fazem um contraste bem pronunciado...

...não tão grande como parece! E diverti-me muito.

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